Abril - Clube Mundo

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social que nos tira de casa e coloca ao lado de desconhe- cidos, em uma sala ... presença de O Artista e A Invenção de Hugo Cabret? Im- provável, exceto se ...


ANO 8



Nº 2

tiragem:



ABRIL/2012



20 000 exemplares

OSCAR 2012

Venceu a nostalgia Critérios mercadológicos foram decisivos para a vitória do filme O Artista, escolhido por um júri conservador, majoritariamente branco e relativamente idoso

nálises sobre os ganhadores do Oscar sempre esbarraram em um limite: a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, que oferece desde 1927 o prêmio mais popular do cinema, não divulga informações sobre seus integrantes. Especulações da imprensa norte-americana permitiam imaginar características do colégio eleitoral, mas nunca passaram de conjecturas baseadas nas indicações e nos resultados finais. Neste ano, contudo, a caixa preta foi aberta. Um “esforço de reportagem” – algo cada vez mais raro na chamada grande imprensa – do jornal Los Angeles Times chegou muito perto de mapear na íntegra o colégio. Dos 5.765 membros aptos a votar em 2012, foi confirmada a identidade de mais de 5,1 mil (89% do total). Descobriuse que se trata de um clube de elite muito distinto da diversidade norte-americana.  Nada menos do que 94% dos integrantes confirmados são brancos; negros correspondem a 2%, a mesma porcentagem de latinos. 77% são homens. A média de idade é de 62 anos, sendo que apenas 14% tem menos de 50 anos! Outro dado revelador: somente 33% foram indicados ao menos uma vez para o Oscar (e 14% o levaram para casa). Ou seja: de cada 10 integrantes, sete nunca chegaram perto de ter um trabalho reconhecido pela própria Academia.  Assim, fica mais fácil entender por que Alfred Hitchcock, Orson Welles e Stanley Kubrick nunca ganharam o Oscar de melhor direção, entre muitas outras omissões grotescas. E, também, por que um filme atípico como O Artista – produção francesa, em preto-ebranco, sem diálogos – conseguiu levar cinco prêmios: melhor filme, diretor (Michel Hazanavicius), ator (Jean Dujardin), trilha sonora e figurino.  Em primeiro lugar, é um filme sobre Hollywood, e francamente positivo: embora seu protagonista seja um ator que vive dificuldades na passagem para o cinema sonoro, no fim dos anos 1920, a culpa é dele – um teimoso que resiste a mudanças. O sistema é preservado. Mais do que isso, incensado, à semelhança do que faz o musical clássico Cantando na Chuva (1951) a partir da mesma circunstância histórica, a notória dificuldade de adaptação de alguns profissionais do período silencioso ao som. Essa celebração nostálgica do próprio cinema, que encontra respaldo natural em eleitores masculinos na

A premiação contrariou a preferência popular, com o objetivo de valorizar a indústria do cinema

Divulgação

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Sérgio Rizzo Especial para Mundo

faixa dos 60 anos, foi igualmente compartilhada por A Invenção de Hugo Cabret. Baseado em romance infantojuvenil de Brian Selznick, o filme de Martin Scorsese homenageia o cineasta francês Georges Méliès, pioneiro do cinema de fantasia, e levou outros cinco prêmios: melhor fotografia, direção de arte, edição de som, mixagem de som e efeitos visuais.  A consagração a esses dois filmes contribuiu para que toda a cerimônia de premiação – programa de TV transmitido ao vivo pela primeira vez em 1952, e o mais antigo ainda em circulação – fosse pautada por uma apologia ao que só o cinema pode oferecer: a experiência social que nos tira de casa e coloca ao lado de desconhecidos, em uma sala escura e diante de uma tela grande, para se envolver com uma história.  Estrelas da indústria, como Brad Pitt e Reese Witherspoon, falaram em depoimentos gravados sobre os bons momentos que viveram em salas de cinemas, o que aprenderam com filmes vistos ali, e o significado profundo que isso teve em suas vidas. Foi uma concessão puramente sentimental da Academia, embalada pela presença de O Artista e A Invenção de Hugo Cabret? Improvável, exceto se dólares têm sentimentos.  A campanha aberta para que o público norteamericano prestigie a ida ao cinema pode ser explicada por números. O número de ingressos vendidos em 2011

nos EUA foi o menor desde 1995. A queda de 4,2% em relação a 2010 impactou um pouco menos a arrecadação (redução de 3,7%) porque aumentou o número de lançamentos em 3D (44, contra 24 no ano anterior), cujos ingressos são de US$ 3 a US$ 5 mais caros.  Como se trata de um mercado gigantesco que movimentou US$ 10,173 bilhões em 2011 (fora as receitas internacionais e de outras janelas de exibição, como TV e vídeo doméstico), ainda está longe a hora de acionar o botão de pânico. Mas convém saber onde ele fica: em menos de dez anos, a retração de público corresponde a 292 milhões de ingressos (o total em 2011 foi de 1,283 bilhão).  Em sua nona participação como âncora da noite, o ator Billy Crystal lembrou que filmes são vistos hoje em telefones portáteis e que “tela grande” é a de um iPad. De qualquer forma, se a cópia em uso nesses aparelhos for legal, isso representa um problema apenas para os donos dos cinemas; mas, se a cópia for ilegal, toda a cadeia produtiva (incluindo produtores e distribuidores) é afetada.  Mais do que somente preocupação com a pirataria, a ênfase do Oscar na valorização da cultura do cinema teve o objetivo de lembrar as suas vantagens afetivas em relação aos competidores na disputa ferrenha pelo tempo livre do cidadão contemporâneo, como a TV e a internet.  Curiosamente, a premiação navegou mais uma vez no sentido contrário ao da preferência popular. O Artista, mesmo com o impulso dado pelo Oscar, só havia chegado a US$ 41 milhões de bilheteria nos EUA até meados de março, o que correspondia ao 73º lugar no ranking dos lançamentos de 2011; A invenção de Hugo Cabret ficou em 50º, com US$ 72,5 milhões.  Os senhores brancos da Academia, com o espírito de um leão de chácara que decide quem pode ou não entrar em uma festa, parecem dizer que só eles sabem o que significa “bom” cinema. E o público – principalmente o jovem, que respondeu pelos principais êxitos de bilheteria de 2011, como o episódio final de Harry Potter, o terceiro Transformers e o penúltimo Crepúsculo, que tiveram arrecadação combinada de US$ 1 bilhão nos EUA? Apenas um mal necessário que sustenta a indústria.  Sérgio Rizzo é jornalista e professor, www.sergiorizzo.com.br

HISTÓRIA & CULTURA HISTÓRIA & CULTURA M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O

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Maurício Torres Especial para Mundo

que é o Brasil? Quem são os brasileiros? Há 90 anos, um grupo de artistas e intelectuais organizou a Semana de Arte Moderna para tentar responder a essas indagações. A semana, realizada entre os dias 13 e 17 de fevereiro, no Teatro Municipal de São Paulo, pretendia, de fato, redescobrir o Brasil. Pela primeira vez na história do país, a questão de sua própria identidade tornava-se um objeto de reflexão e debate sistemático. Com grande ousadia e, eventualmente, boa dose de irreverência, os modernistas maestro Heitor Villa-Lobos, os poetas, escritores e músicos Oswald de Andrade e Mário de Andrade, o escultor Victor Brecheret e a pintora Anita Malfatti, entre muitos outros, queriam construir uma outra forma de ver e entender o Brasil, livre dos estereótipos inerentes ao olhar do colonizador europeu. Um Brasil que não se esgotasse no exotismo de suas matas, na beleza de suas paisagens, no suposto primitivismo de seu povo. Conseguiram? Não há uma resposta simples. A Semana ofereceu, sem dúvida, uma chave interessante e riquíssima de possibilidades para interpretar a história do Brasil, compreendida como uma síntese dinâmica do legado cultural europeu, negro e silvícola. Essa ideia seria consolidada, em 1924, pelo Manifesto Pau-Brasil, em que Oswald expressa a necessidade de o Brasil buscar na miscigenação da raça a fonte de sua vocação cultural e artística. A mesma proposta básica seria retomada por Oswald, em 1928, com o Manifesto Antropófago, em que denuncia e descarta as normas tradicionais e ultrapassadas, que, ao impor padrões acadêmicos para a arte, criavam uma barreira ao acesso às origens da cultura brasileira (veja o box). No mesmo ano, a proposta de Oswald ganharia corpo e alma com a genial criação de Mário de Andrade: Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter”. Para o professor e crítico literário Antonio Candido, Macunaíma é “a obra central e mais característica do movimento modernista, podendo encontrar nela um verdadeiro compêndio das lendas dos índios, dos ditos populares, dos sincretismos religiosos, dos vários regionalismos brasileiros; tudo isso desenvolvido com uma sátira popular peculiar, em que parodia as formas acadêmicas e as ‘importadas’ da Europa. Mário de Andrade mergulhou no primitivismo dos povos indígenas e na cultura das demais raças que originaram o Brasil.” Mas a chave modernista mostra-se insuficiente para oferecer uma resposta ao problema da identidade nacional brasileira. Historicamente, a identidade nacional é filha do mundo moderno, uma construção simbólica europeia, economicamente criada pela burguesia, culturalmente possibilitada pelo processo do letramento e territorialmente assentada sobre o Estado-nação. Como explica o historiador Eric Hobsbawn, a consolidação das fronteiras territoriais do estado nacional combinou-se com a criação de uma esfera pública ancorada na participação de vastos setores da população em movimentos

Um grupo de artistas e intelectuais teve a ousadia de propor, em 1922, uma série de questões sobre a identidade nacional brasileira que, ainda hoje, desafiam qualquer sistema interpretativo que criaram marcos da identidade nacional. A Revolução Francesa oferece o cenário mais completo desse processo: a França moderna foi construída por mobilizações populares que resultaram na queda da Bastilha (em 14 de julho de 1789), e animadas pelos escritos e ideias de filósofos como Voltaire, Montesquieu e Rousseau. A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão criava, sobre os escombros do feudalismo, a nova figura do indivíduo protegido por leis e direitos inalienáveis, que deveriam ser garantidos pelo estado democrático.

© Coleção particular

© Instituto de Estudos Brasileiros/IEB/USP-SP

Tupi or not tupi, th

Semana de Arte Moderna 1922

Tarsila do Amaral (acima), mesmo não tendo participado da Semana, pintou, em 1928, o quadro Abaporu, símbolo mais conhecido do modernismo brasileiro, como um presente ao marido Oswald de Andrade; o título vem de uma composição dos termos tupi: aba (homem), porá (gente) e ú (comer), significando “homem que come gente”

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Só a antropofagia nos une

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m 1928, Oswald de Andrade lançava o Manifesto Antropófago, inspirado pelo famoso episódio envolvendo a deglutição do bispo português D. Pedro Fernandes Sardinha, em 16 de julho de 1556, por canibais da tribo dos caetés, após naufragar no litoral de Alagoas (há controvérsias, entre os historiadores, sobre a origem étnica dos canibais; alguns afirmam terem sido os tupinambás). Sinteticamente, Oswald propunha que a construção da identidade brasileira passava pela incorporação das culturais europeias e sua transformação em termos nacionais, passando pelo filtro da miscigenação. Muito longe de “imitar”, os brasileiros deveriam criar uma cultura original, enriquecida pela contribuição singular dos povos originários e das culturais africanas. Eis aqui trechos do Manifesto: Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa. O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará. Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande. Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar. Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls. Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Où Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos. Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. (...) A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte. Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama. 2012 ABRIL

M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA HISTÓRIA N G E A M& UN CULTURA D O PA N GHISTÓRIA E A M U N D& O PA CULTURA N G E A -HC

© Coleção particular

Villa-Lobos, um maestro brasileiro

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1 A foto acima mostra participantes e organizadores da Semana de 1922, incluindo Oswald de Andrade (1), Luís Aranha (2), Mário de Andrade (3), Cândido Mota Filho (4), René Thiollier (5), Manoel Bandeira (6), A. F. Schmidt (7), Paulo Prado (8), Graça Aranha (9), Godofredo da Silva Telles (10) No Brasil, esse processo não existiu. A persistência da escravidão até quase o final do século XIX manteve a imensa maioria da população – formada por negros, povos originários e imigrantes europeus pobres – alijada da esfera do letramento, condição que persiste até os nossos dias. Além disso, não houve na história brasileira momentos de ruptura com o passado – primeiro representado pelo Brasil Colônia, depois pelo Brasil Império – com a força necessária e suficiente para se inscreverem como marcos da nova nacionalidade. Os marcos da nacionalidade brasileira são fracos. Nada houve, aqui, algo sequer remotamente semelhante, em força evocativa, à já mencionada queda da Bastilha, que representou um acerto de contas com o Ancien Régime e o parto de uma república sobre bases integralmente novas, ou a Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1776, apenas possibilitada por uma guerra sem tréguas que resultou na expulsão da monarquia imperial inglesa e na fundação de uma democracia. No Brasil, a transição da condição de colônia para país independente de Portugal (1822) e de mo-

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músico, compositor e maestro carioca Heitor Villa-Lobos (1887-1959), um dos principais participantes da Semana de Arte Moderna de 1922, completaria 125 anos em 5 de março. Sua obra é, ao mesmo tempo, universal e profundamente comprometida com a busca de uma expressividade nacional, incorporando os sons das matas, dos povos originários, do folclore. Sua ambição maior era encontrar uma “linguagem brasileira” para a música, em coerência com a perspectiva alimentada pelo projeto modernista. Sua vasta obra, incluindo sinfonias – algumas tendo por tema a Amazônia e as selvas –, as Bachianas brasileiras, modinhas e cânticos é conhecida e interpretada em todo o mundo. O primeiro professor de música de Villa-Lobos foi o seu próprio pai, modesto funcionário da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. Começou com uma viola adaptada que serviria para introduzir o jovem Heitor ao estudo do violoncelo. Aos 12 anos, já órfão de pai, Heitor começou a se interessar por música popular (em particular, o chorinho) e por canções folclóricas e populares que ouvia em suas viagens pelo interior do país (que realizou entre os 18 e 20 anos), que seriam posteriormente incorporadas à sua obra. Em 1915, ao apresentar suas primeiras composições, causou forte reação de um público conservador, que não aceitava a inclusão de temas populares e folclóricos na música erudita. Era o prenúncio das polêmicas que marcariam a sua vida. Já adulto e casado com a pianista Lucília Guimarães, viajou várias vezes à Europa para estudar e trabalhar, em parte patrocinado pelo milionário carioca Carlos Guinle. Entusiasmado com a perspectiva de promover a cultura nacional, contribuiu com o Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas, quando aceitou criar um programa nacional de educação musical. Villa-Lobos organizava imensos concertos de cantos orfeônicos em estádios de futebol repletos de jovens e incentivou o ensino do canto nas escolas públicas. “Quem o viu comandando o coro de 40 mil vozes adolescentes, no estádio do Vasco da Gama, não pode esquecê-lo nunca. Era a fúria organizando-se em rimo, tornando-se melodia e criando a comunhão mais generosa, ardente e purificadora que seria possível conceber”, escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade. É claro que sua participação num governo ditatorial é fonte de polêmica. Mas, tanto quanto se saiba, VillaLobos não extraiu nenhuma vantagem pessoal de sua posição, nem de suas relações com Vargas. Seu único interesse era mesmo o de divulgar a música brasileira. Em 1948, já consagrado mundialmente, Villa-Lobos teve que extrair um câncer. Casou-se com a ex-aluna Arminda Neves d’Almeida, após separar-se de Lucília. Não teve filhos.

narquia para república (1889) foram processos politicamente controlados, negociados pelas elites, “pelo alto” e realizados mediante a repressão sangrenta a movimentos populares (da qual o massacre de Canudos é um emblema catastrófico). A abolição da escravidão foi incompleta e injusta. Ao preservar a estrutura do latifúndio, proibiu o acesso à terra à população negra libertada, que foi, por isso, condenada à miséria. A permanência do latifúndio teve, como contrapartida, o desenvolvimento de uma economia agroexportadora, em que a industrialização ocorreu muito tardiamente e segundo um modelo subordinado aos países industrializados, em particular os Estados Unidos. O resultado disso é que o Brasil ainda é um dos países mais desiguais do planeta: uma parcela ínfima da população ingressou no mundo moderno (estatísticas do Ministério da Educação, por exemplo, indicam que apenas uma parcela pequena da população consegue ler um livro). Por essas razões, a “identidade nacional brasileira” se estilhaça sob o peso das divisões econômicas, culturais, políticas e sociais que atravessam o país. Se a chave interpretativa oferecida pela Semana teve o mérito de apontar a coexistência de um Brasil moderno (europeu) com um Brasil arcaico (herdado dos povos originários e da cultura negra introduzida pelos escravos), também aí mostrou sua fragilidade como resposta. Apesar de tudo, a Semana teve forte impacto na produção cultural posterior. A busca de uma “arte nacional” desdobrou-se em várias vertentes: do nacionalismo exacer-

bado proposto por correntes fascistas, racistas e xenófobas (como a vertente integrada por Plínio Salgado, Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo, dos grupos Anta e Verde-Amarelo), ao nacionalismo patrocinado pelo Estado varguista (anos 1930 e 1940), com a participação decisiva de artistas como o maestro Villa-Lobos, uma das grandes expressões da música brasileira e universal (veja o box), o pintor Cândido Portinari e o poeta Manuel Bandeira, ao experimentalismo de Mário e Oswald de Andrade, que propunham um “nacional sem nacionalismo”. Inspirou também os movimentos estéticos dos anos 1960, como a Tropicália, de Caetano e Gil, o Cinema Novo, de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos e o Teatro Oficina, de Zé Celso Martinez Correa, além de artistas do porte de Tom Jobim e Chico Buarque. Talvez a Semana tenha causado mais barulho do que dado respostas, mas suas questões são, ainda, um desafio, especialmente no mundo contemporâneo, quando as tecnologias de comunicação parecem dissolver algumas das tradicionais fronteiras do Estado-nação. Assim como a imensa maioria da população brasileira ingressou na era da televisão sem ter passado pela revolução da comunicação impressa, agora enfrenta as questões postas pelo surgimento de uma suposta identidade cultural globalizada sem ter sedimentado os fundamentos da identidade nacional. O Brasil se mantém como um enigma. Maurício Torres é graduado em Letras e mestre em Geografia pela Universidade de São Paulo

ABRIL 2012

PA N G E A M &UCULTURA N D O PA N G HISTÓRIA EAMUND & OCULTURA PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O HC- HISTÓRIA

© Acervo Museu Villa-Lobos

hat is the question

desigualdade

Machismo ainda impede participação política das mulheres

© Biblioteca do Congresso, Washington

A zoóloga e militante feminista Bertha Lutz (acima) liderou, no Brasil, a luta pelo direito ao voto feminino, que resultou no decreto 21.076, promulgado em 24 de fevereiro de 1932 pelo presidente Getúlio Vargas

Acervo da Justiça Eleitoral

esmo a passos lentos, a busca pela igualdade de direitos entre homens e mulheres vem, nas últimas décadas, apresentando avanços no Brasil. Mulheres como “chefes de família”, em cargos públicos e de diretoria, entrando na universidade e até mesmo governando a nação já não são mais novidade. Ainda que pareça cotidiano, os espaços ocupados pelas mulheres hoje não lhes foram dados. Mulheres brasileiras e em todo o mundo lutaram para conquistar direitos como o direito ao voto, ao divórcio, a trabalhar “fora de casa”, usar calças, utilizar-se de métodos contraceptivos, além de muitos outros. O primeiro país no mundo a instituir o voto feminino foi a Nova Zelândia, em 1893. Mesmo a Grécia, tida como o berço da democracia, não considerava as mulheres cidadãs, portanto, como os escravos e estrangeiros, eram inaptas a votar. Já no Brasil, a conquista do voto feminino ocorreu apenas em 1932, no governo do presidente Getúlio Vargas, em 24 de fevereiro, na reforma no Código Eleitoral junto à criação da Justiça Eleitoral. A concessão do voto às mulheres não foi parte de uma plataforma política do governo, ou ainda, acompanhando políticas internacionais. Só ocorreu devido à grande pressão dos então movimentos feministas, liderados pela sufragista Bertha Lutz. Para a jornalista Bárbara Lopes, “o fato de mulheres não poderem votar era uma declaração explícita de que nós éramos vistas como cidadãs de segunda classe. Essa mesma visão se repetia em diversas leis – por exemplo, até 1962 a mulher precisava de autorização do marido para trabalhar. Essa foi a primeira fase do feminismo, a luta por uma igualdade pelo menos no papel. Só estar no papel não resolve todas as questões, mas é um passo fundamental.” Após conquistarem um direito básico como o voto, a participação política das mulheres foi lentamente aumentando. Chegamos a 2012 com uma mulher na presidência da República, 11 ministras, 43 deputadas federais (das 513 vagas), 12 senadoras (das 81 vagas), além de governadoras, prefeitas e vereadoras – um quadro bem diferente da Constituinte em 1934, onde apenas uma vaga das 234 foi ocupada por uma mulher, Carlota Pereira de Queirós.

Coleção particular

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Em 1932, o governo Vargas garantia o direito das brasileiras ao voto, mas com restrições; em todo o mundo, a participação feminina na esfera pública avança, mas é limitada

Ana Carolina Andrade Especial para Mundo

A participação da deputada Carlota Pereira de Queirós (à esq.) na Assembleia Constituinte de 1934 já refletia um avanço do movimento das mulheres contra a discriminação de gênero, também registrado no título de eleitora (acima)

Os tempos mudam Na história mundial, são poucas as mulheres protagonistas de grandes batalhas, escritoras, chefes de estado se comparadas aos homens – ou pouco lembradas. Hoje, refletindo uma certa mudança de mentalidade, mulheres ocupam posições importantes, que definem os rumos da política mundial, incluindo Angela Merkel (chanceler da Alemanha), Hillary Clinton (secretária de Estado dos EUA) e Christine Lagarde (diretora do FMI). A primeira mulher no mundo a se tornar presidente foi Isabel Perón, na Argentina, em 1974. Em 1979, Margaret Thatcher se tornou primeira ministra britânica. Thatcher, ao lado de Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos da América (EUA) consolidou o neoliberalismo no mundo (e todas suas mazelas). A integrante da SOF, Neusa, relembra que “o aumento da participação política das mulheres se deve à sua maior organização e ação.” Respeitando as características de cada país, hoje os movimentos feministas têm maior inserção, mesmo ainda sendo estigmatizados.

Mesmo ocupando espaços nas esferas de poder, a garantia de melhoria na vida das mulheres, pela existência de uma mulher que irá representá-las, não é necessariamente uma regra. Para que pudesse se eleger, a então candidata Dilma Rousseff recuou em relação ao seu posicionamento quanto à legalização do aborto. Setores conservadores da sociedade, como as bancadas religiosas, levaram a candidata a se posicionar contrária à legalização. A defesa da legalização do aborto é uma das principais pautas do movimento feminista, tanto pelo direito da mulher sobre seu corpo como por se tratar de uma questão de saúde pública. Além disso, verbas para Delegacias da Mulher foram diminuídas já no 1º ano do governo Dilma, dificultando a implementação da Lei Maria da Penha e, portanto, do combate a violência contra a mulher. Diversos entraves à participação das mulheres nos espaços públicos, no local de trabalho, em seu bairro, ou no âmbito de um partido limitam a sua capacidade de ação. O machismo ainda é muito enraizado na sociedade: relega a mulher ao espaço privado, assegurando ao homem a primazia sobre a esfera pública, criando barreiras políticas e culturais à inserção feminina. A integrante da Sempre Viva Organização Feminista (SOF), Neusa Tito, enfatiza que “para que as mulheres participem da vida política é necessária a implementação de políticas públicas que garantem essa ação, como por exemplo, a criação de creches públicas e gratuitas”. Entre esses entraves, Bárbara destaca a divisão sexual do trabalho. “A ideia é de que cabe aos homens prover o sustento da casa com o trabalho produtivo e às mulheres cuidar da casa e dos filhos. Na prática, a situação mais comum hoje é a mulher estar no mercado de trabalho (com salários menores) e acumular isso com o trabalho doméstico. Com isso, o tempo das mulheres é mais escasso. Por exemplo, pode ser complicado para uma mulher ir a uma reunião política à noite porque ela precisa servir o jantar dos filhos.” Mulheres que optam por estar em posições de liderança, ou ainda em locais tradicionalmente ocupados por homens, são postas à prova. É testada não apenas em sua competência para realizar determinada função ou trabalho, mas ainda é objeto de julgamentos sobre sua aparência, seus “deveres como mãe e esposa” – os mesmos ouvidos pelas sufragistas na década de 1930. A emancipação das mulheres não se refere somente à questão da inserção no mercado de trabalho, conquista de cargos públicos e salários iguais, mas principalmente a uma mudança das relações que se constroem na sociedade – da divisão das tarefas domésticas a compreensão de que mulher nenhuma é propriedade de ninguém. Ana Carolina Andrade é jornalista e militante feminista 2012 ABRIL

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