Aconselhamento Pastoral. pdf - adevic

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conceitos e definições: a) Aconselhamento Pastoral: Este termo é o equivalente no vernáculo à palavra inglesa pastoral counseling. Sua origem está nos EUA ...
1 ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA FACULDADE DE TEOLOGIA INTRODUÇÃO À CLÍNICA PASTORAL Conteúdo: 1. O que é poimênica? (Terminologia e Definições) 2. Poimênica na Bíblia (Antigo e Novo Testamento) 3. Desenvolvimento histórico 4. Concepções contemporâneas 5. Estudo de situações específicas 1. O que é poimênica? A poimênica, ou Clínica Pastoral é antes de tudo, uma disciplina da Teologia Prática. A Teologia Prática é por sua vez, uma das três grandes áreas da Teologia científica. As outras duas são, no exemplo da Faculdade de Teologia da Escola Superior de Teologia, a área histórico-sistemática e a área bíblica. Esta composição em três grandes áreas no estudo científico da Teologia remonta a D. F. E. SCHLEIERMACHER1. Há uma certa confusão nos termos empregados para definir esta disciplina da Teologia Prática. Na língua alemã se impôs o conceito Seelsorge, como termo amplamente aceito e utilizado academicamente, quanto como conceito compreendido pelas pessoas de modo geral, quer estejam ou não inseridas no contexto eclesiástico. Por exemplo, se alguém perguntar na rua o que é Telephonseelsorge, Gefäangnisselsorge, Militärseelsorge, Krankenhausseelsorge, seguramente as pessoas saberão responder do que se trata. Possivelmente irão associar esta atividade ao trabalho pastoral. Mesmo assim, este conceito apresenta problemas. Se traduzirmos literalmente ao português este termo composto, então teremos: Seele – Alma; Sorge – cuidado, preocupação. Estaria pois expressado com este conceito o zelo pela alma de alguém. O dicionário poruguês-alemão Langenscheidt traduz o termo Seelsorge como cura de almas. Se pesquisarmos na história da Igreja, veremos que o conceito Seelsorge nada mais é do que uma germanização do conceito latino cura animarum que descrevia as atribuições do pároco para com os seus fiéis, no exercício do ministério pastoral, seja no culto ou na catequização. A fonte de inspiração remonta ao próprio Jesus Cristo que se autocompreendeu como o bom pastor (João 10) que zela pelas suas ovelhas.2

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Se bem que com pequenas diferenças: SCHLEIERMACHER agrupou basicamente três áreas da Teologia: Filosófica, Histórica e Prática. 2 Cf. WINTZER, F.. Seelsorge. P. XIV (14).

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2 O principal problema neste conceito é a sua possível contaminação com uma visão antropológica dualista.3 É sabido, a partir da pesquisa exegética, que no Novo Testamento ocorrem momentos de assimilação da filosofia dualista grega. É próprio dessa visão considerar que há dois princípios básicos que constituem o ser humano: corpo e alma (espírito – matéria). É próprio também dessa visão, que a alma vive numa constante tensão com o corpo, visando superá-lo. Descreve-se inclusive o corpo como uma espécie de prisão da alma; tanto, que a morte física se torna um bem, pois neste momento a alma é libertada dos grilhões do corpo. Esta conotação, a partir da filosofia grega, pode dar margem à compreensão de que na verdade, quando se fala de cura animarum, está se falando de uma tarefa voltada à alma, ao espírito, em detrimento do próprio corpo. Neste sentido, torna-se fácil compreender os autoflagelos indicados aos penitentes, como na concepção do Papa Gregório I, em seu Livro de Pastoral (590-604). Ou, p. ex., também no programa do Abade COLUMBAN (530-615). Seu programa consistia na exigência de uma confissão pessoal auricular dos monges ao confessor dentro dos mosteiros, em especial, mas também, em relação à população em geral, que deveria ter seu confessor auricular pessoal. Em resposta a essa confissão, o confessor prescrevia penitências severas para o corpo, por “pecados”, às vezes até curiosos: P. ex., para pequenas infrações eram aplicadas 100 chicotadas. Estas poderiam ser falar com uma mulher, sem testemunhas ou com um leigo sem ordem, tocar o cálice com os dentes, tossir durante a recitação cantada dos Salmos.4 Também na vida do monge agostiniano Lutero, há sinais desta prática de castigo do corpo para alcançar o alívio do espírito, até a sua descoberta da Justificação por Graça e Fé. Mereceria uma pesquisa científica, o que leva os cristãos no sudeste da Ásia, em especial, os Filipinos, a também efetuarem estes autoflagelos (especialmente na Semana Santa). Na jovem caminhada da Teologia Prática no contexto latino-americano, ainda não se alcançou este nível de consenso, quanto ao termo mais apropriado para caracterizar a disciplina. Há algumas tentativas, umas mais e outras menos bem-sucedidas, no sentido de reunir em torno de si um consenso. Se já no meio acadêmico esta nomenclatura consensual é difícil de ser alcançada, tanto mais difícil se torna para o povo na rua saber o que se pretende dizer com termos como poimênica, clínica pastoral, psicologia pastoral. Se ouvirmos, porém, como as pessoas ligadas a uma congregação religiosa descrevem o 3

Cf. SCHNEIDER-HARPPRECHT, C.. Aconselhamento Pastoral. In Teologia Prática no Contexto da América Latina, p. 293 s. 4 Cf. RÖSSLER, D.. Grundriß der Praktischen Theologie, P. 177 s.

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3 que com estes termos se pretende definir, então certamente aparecerá a formulação conversar com o(a) pastor(a). E, sob conversar com o pastor, geralmente, tem-se em mente uma “conversa especial”. Apesar de muitas vezes esta “conversa” começar com rodeios, que lembram uma conversa qualquer, certamente há um motivo mais profundo oculto, o qual pode ou não ser revelado. Para isso, a pastora precisa estar qualificada com um bom método e uma boa técnica para “chegar ao ponto” e não se perder nos meandros da conversa ocasional. Facilmente percebemos que de fato a conversa é uma das formas pelas quais acontece o que originalmente era entendido como cura d’almas. Porém, com o corretivo, a partir de uma compreensão antropológica que tem em vista o ser humano em sua totalidade, ou seja, constituído de forma indissolúvel de matéria e espírito. Desta forma são resgatados elementos mais antigos da tradição cristã, de caráter semítico, como veremos mais tarde, na compreensão teológico-antropológica do ser humano. SCHNEIDER-HARPRECHT traduz esta compreensão nos seguintes termos: O ser humano é o ser falante que vive a partir da relação com os outros buscando satisfazer suas necessidades de auto-sustentação física, psíquica e social.5 A partir deste pano de fundo pode-se agora tentar chegar a uma clareza de conceitos e definições: a) Aconselhamento Pastoral: Este termo é o equivalente no vernáculo à palavra inglesa pastoral counseling. Sua origem está nos EUA e se tornou uma das linhas fundamentais durante o século XX. O conceito está intimamente associado ao modelo psicoterapêutico de Carl ROGERS (1902-1987), conhecido como Terapia Centrada no Cliente.6 Esta concepção tornou-se uma escola, cujos reflexos também podem ser vistos na formação da EST nesta área nas últimas décadas. Conceitos, como “aconselhamento não-diretivo”, passaram a fazer parte de uma postura aceitável teologicamente na relação entre os sujeitos do aconselhamento, que passam a ser chamados de Conselheiro e Cliente. De acordo com SCHNEIDER-HARPPRECHT, este conceito também apresenta dificuldades, “pois sugere que aconselhamento seria em primeiro lugar uma atividade do

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Cf. SCHNEIDER-HARPPRECHT, C. Aconselhamento Pastoral. In: Teologia Prática no contexto da América Latina, p. 309. 6 Cf. ROGERS, Carl R. Client-Centered Therapy, 1951.

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4 pastor como ministro ordenado.” Tendo em mente esta implicação e limite, o autor sugere que ainda assim esse seria um termo a continuar sendo usado.7 b) Poimênica: O termo poimênica remonta às tradições mais antigas na história da Igreja, quando se tentava definir o papel do pastor em relação à sua comunidade. Nesta tradição, o termo pastor (do grego oÒ poimv/n)) se orienta na autocompreensão de Jesus, quando ele diz de si eu sou o bom Pastor: )ÜEgw/ ei)mi o( poimv/n o( kalo(j! (João 10. 11). Na compreensão contemporânea o termo passa a ser entendido como “a ciência do agir do pastor”.8 A dificuldade neste caso consiste em como designar os sujeitos envolvidos nesta ação de caráter poimênico. Se mantivermos os termos gregos, deveríamos então falar por um lado em poimen, para aquele que age na condição de pastor e de próbaton (a palavra grega para ovelha), quando se pretende designar a pessoa atendida poimenicamente. Ou se usa o par de termos equivalentes no português: pastor e ovelha. Dificilmente, porém, alguém gostaria de ser chamado ovelha ao procurar o pastor para uma conversa pastoral ou alguém ser chamado de próbaton ao procurar um poimen para uma conversa poimênica. A outra dificuldade é que o emprego do termo genérico pastor dissiparia o sentido específico que se pretende descrever com o termo. c) Outros dois conceitos são empregados no meio acadêmico para descrever a disciplina. O título desta preleção é Introdução à Clínica Pastoral. Por Clínica Pastoral entende-se “o acompanhamento pastoral na área da saúde.” 9 A vantagem deste conceito é que ele alarga o campo de atuação para todo o contexto da saúde. Isso vem ao encontro da premissa bíblico-antropológica a que nos referimos anteriormente de ver o ser humano em sua totalidade. Por outro lado os conceitos de clínico e paciente sugerem uma proximidade com a medicina, com clínicas e hospitais, quando na verdade estes são apenas alguns dos campos de atuação. Por outro lado, se autodenominar de clínico pode parecer uma pretensão descomedida. d) Menos freqüentemente, mas ainda assim, ouve-se falar em Psicologia Pastoral. A Psicologia Pastoral na verdade é uma escola dentro da disciplina que tentamos conceituar. Seu advento acontece no princípio do século XX, a partir do florescimento da Psicologia, especialmente em sua vertente analítica, com as 7

Cf. SCHNEIDER-HARPPRECHT, C. Aconselhamento Pastoral. In: Teologia Prática no contexto da América Latina, p. 291. 8 Ibidem. 9 Ibidem.

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5 pesquisas e publicações estarrecedoras de S. FREUD. Cedo houveram reações no sentido de incorporar ou de combater as novas descobertas que causavam furores nos meios científicos. Na Alemanha, na década de 60 foi criada a Sociedade alemã de Psicologia Pastoral (DGfP), que é responsável por uma linha de pesquisa conceituada, conquistando inclusive o reconhecimento público de muitos cursos de terapia e psicoterapia, bem como os diplomas de qualificação dos respectivos orientadores. No contexto latino-americano, uma das dificuldades é que a quantidade de pessoas qualificadas em ambas as áreas, Teologia e Psicologia, é muito restrita, o que limitaria muito a área de abrangência da disciplina. Por outro lado, seria uma apropriação indevida do termo Psicologia se na verdade não supõe a formação nesta disciplina. e) SCHNEIDER-HARPPRECHT sugere, por conseguinte, a combinação dos dois termos Poimênica e Aconselhamento Pastoral. Poimênica seria o termo que designa em sentido amplo a disciplina e Aconselhamento Pastoral seria empregado em sentido estrito, como uma forma dentre inúmeras outras de Poimênica: Definimos a poimênica como o ministério de ajuda da comunidade cristã para os seus membros e para outras pessoas que a procuram na área da saúde através da convivência diária no contexto da Igreja, e definimos o aconselhamento pastoral como uma dimensão da poimênica que procura ajudar através da conversação e outras formas de comunicação metodologicamente refletidas.10 Doravante queremos adotar esta terminologia nesta preleção. Falaremos em poimênica, como a matéria dentro da qual queremos nos introduzir e falaremos em aconselhamento pastoral como uma dimensão da relação poimênica no contexto da comunidade cristã. Na situação de aconselhamento pastoral, optamos por falar em conselheiro e aconselhando, apesar das dificuldades relacionadas com a raiz conselho. 2. Raízes bíblicas da Poimênica A Bíblia em seu todo pode ser compreendida como expressão de uma ação poimênica, porque nela encontramos sinais e histórias que relatam como o amor protetor e salvífico de Deus foi experimentado pelas pessoas que o buscaram durante os tempos.11 Neste sentido a Bíblia é um livro de poimênica: um livro perpassado por experiências de cura animarum em sentido integral. Nestas experiências o ser humano é visto em sua estrita relação com Deus e com o próximo, a qual ainda é imperfeita e por vezes ameaçada. Ela

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Ibid., p. 291 s. Cf. HANDBUCH DER SEELSORGE, p. 25.

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6 tende para a realização da comunhão plena, mas depende da graça de Deus para superar suas sombras e limitações. Na Bíblia, como um todo, temos uma visão bastante nua e crua do ser humano. Toda a sua ambivalência é registrada nos mínimos detalhes nas sagas relativas aos seus grandes personagens. Alegria e tristeza, vida e morte, lealdade e traição, salvação e sofrimento, perdão e culpa, verdade e mentira, confiança e medo, graça e desgraça, são só alguns pólos dessa ambigüidade humana presente nos relatos bíblicos. O ser humano é revelado nas histórias bíblicas como um ser capaz dos gestos e sentimentos mais sublimes e, por outro lado, como um ser capaz de agir e sentir da forma mais perversa possível. E essa antropologia se aplica a cada ser humano individualmente. Cada pessoa carrega dentro de si estas duas forças elementares que a tornam tão ambígua em seu agir, pensar e sentir. Estas duas forças elementares são na terminologia religiosa o bem e o mal e na psicologia analítica de FREUD o impulso para a vida e o impulso para a morte (Lebenstrieb e Todestrieb). Para dentro desta prisão humana é revelado o amor de Deus, no sentido de promover o triunfo da vida em relação à morte. O ser humano é resgatado da sua condição de escravo destas forças antagônicas para uma nova vida – soteria (salvação). Lá onde há sinais de dor, sofrimento, morte, como conseqüência última da imperfeição humana (pecado), manifesta-se o amor e a graça de Deus para proporcionar uma nova vida, um novo começo (cf. p. ex. a história do Êxodo). a) No Antigo Testamento No Antigo Testamento encontramos especialmente em dois livros cenas que demonstram a profundidade dos abismos que assolam a natureza humana e, por outro lado, também sinais da manifestação da graça de Deus: Jó e Salmos. No livro de Jó é exemplarmente mostrada a angústia de uma pessoa que se debate numa situação de dor e sofrimento. As dúvidas que assolam o seu ser, mas por outro lado também, a força e a coragem de lutar e enfrentar esta situação. No livro dos Salmos também temos relatos de inúmeras situações, onde são indicadas as profundezas do sofrimento humano. Quem p.ex. não sabe de cor o Salmo 23, onde fala do “vale das sombras e da morte” ou do Salmo 90 que coloca a questão da brevidade e transitoriedade da vida em relação à morte. O que perpassa esses exemplos é que Deus é apresentado como a alteridade nestas situações limítrofes, com o qual pode-se discutir, para o qual é possível se lamentar e, acima de tudo, em quem se pode buscar e alcançar consolo. Deus, Javé, é em última análise o conselheiro do seu povo. Através dos seus sacerdotes, anciãos, juízes e profetas ele orienta, ensina, julga, reconcilia, repreende, anima, consola, ajuda e purifica o seu povo.

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7 O rompimento desta relação com Deus é interpretado como a causa de todos os males. O ser humano é criatura gerada ex nihilo, a partir do sopro divino (Gn 2. 7). Este sopro (ruach), cria o ser humano dotado de respiração, no hebraico denominado nefesh (JPN), e que é responsável, em última análise, pela vida da pessoa. Sem o ruach e, conseqüentemente, o nefesch, o corpo humano se desfaz e volta ao pó a partir do qual foi moldado. Este nefesch se mantém vivo e saudável à medida que estiver em estreita ligação com a sua fonte originária – o ruach de Deus. Por conseguinte pode-se dizer: As perturbações da relação com Deus afetam todo o ser humano. (...) Afastada de Deus a nefesh enfraquece, sofre, fica doente, segue o mal em seus atos e pode morrer. A morte é a falta da relação com Deus, e quem se afastou dessa relação já participa da realidade da morte enquanto ainda vive fisicamente.12 A maneira de conservar-se neste espírito de Deus é mantendo-se obediente às suas leis. Colocando a Tora no centro de suas vidas, os israelitas asseguravam esta relação fundamental com Deus. Sofrimento, dor e morte estão por conseguinte associados à não observância das leis de Deus. A atitude esperada é, nos casos extremos, onde o desrespeito às leis de Deus levou a guerras e ao exílio, voltar à obediência e ao cumprimento da lei. São os Profetas que apontam continuamente para a injustiça, que tem em sua raiz a distorção ou o não cumprimento da lei, como causa das desgraças sofridas pelo povo. Um outro aspecto importante na busca por elementos de poimênica no Antigo Testamento é a ritualização. As ritualizações são muitas vezes formas sociais (grupais ou comunitárias) de trabalhar momentos de crise. Uma destas ritualizações “em sinal de tristeza é raspar a cabeça e a barba, andar pelas ruas vestindo sacos de pano grosseiro; gritar e chorar amargamente nas praças e nos terraços das casas.” 13 Este ato público também pode ser um ato de protesto contra um sofrimento causado por uma injustiça, como nos é demonstrado na história de Tamar e Amnom (2 Samuel 13. 1-20). Outra forma de ritualização comum é a existência de uma espécie de profissão de “carpideiras”. Geralmente constituídas por viúvas, essas mulheres clamavam e choravam em situações de morte e desgraça (cf. p. ex. Salmo 78. 64). b) No Novo Testamento “Jesus de Nazaré, a partir de sua forma de agir individual, a partir de sua consciência interior e a partir de seu efeito sobre o meio de sua época (apresentado pelas histórias bíblicas) pode ser visto como o inaugurador do comportamento poimênico.” 14 Sua

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Cf. Cf. SCHNEIDER-HARPPRECHT, C. Aconselhamento Pastoral. Op. cit., pp. 294 s. Cf. tamb. WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento, p. 51ss. 13 Cf. P. Ex. Isaías 15. 1-4 ou Ester 4. 1ss. 14 Cf. K. WINKLER, Seelsorge, p. 80.

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8 maneira de falar, de ouvir, de sentir, de reagir, enfim toda a sua forma de ser é tão exemplar, que se tornou um parâmetro para a avaliação de toda poimênica cristã. Esta forma única e paradigmática de se relacionar com o mundo que o cerca, é descrita por O. PFISTER da seguinte forma: Todos os cansados e sobrecarregados, todos os pobres de espírito, todos os que sofrem, aqueles sem paz, castigados, os alienados dos dons amorosos de Deus, possuídos por espíritos malignos e desviados dos caminhos de Deus pareciam aos seus olhos qual ovelhas sem pastor, de cuja lamentação ele se compadeceu. 15 Aqui a Poimênica adquire o seu aspecto de consolo, misericórdia, bondade e amor! Também o próprio cristianismo, como resultado histórico da vida e proclamação de Jesus, pode ser visto como paradigmático para a compreensão da poimênica. Neste sentido, o Cristianismo originalmente assume uma postura de oposição ao mundo assim como ele se apresenta. Sua intenção fundamental é mudar ou transformar este mundo, a partir da realidade revelada por Deus em e através de Jesus Cristo. Os dias deste éon já estão contados até o dia da párousia, quando todas as coisas serão radicalmente transformadas a partir da vinda de Cristo em glória. Neste tempo intermediário cabe arrancar das garras deste mundo o maior número possível de almas. Aqui a poimênica adquire um aspecto escatológico, de confrontação com a realidade. O. BAUMGARTEN resume esta postura da seguinte forma: A mais profunda fundamentação da poimênica reside na compreensão da salvação das almas como soteria, como um arrancar, como salvação dentre os perdidos, num mundo que está por desaparecer, para o rebanho daqueles poucos eleitos. Não se trata da formação das almas para que elas possam manifestar suas potencialidades em harmonia; mas sim, trata-se da salvação das almas perdidas que estão distantes de Cristo e distantes de Deus. Este absolutismo religioso, que está baseado na avaliação negativa do mundo, da natureza e da cultura, sustenta no Novo Testamento toda a poimênica.16 Uma terceira posição enfoca Jesus Cristo como o modelo ideal da poimênica cristã a ser imitado, especialmente com base em João 10. A íntima relação com Cristo faz com que de forma atemporal sempre seja possível sentir e experimentar uma nova fonte de vida. Alfred Dedo MÜLLER descreve esta relação com Cristo da seguinte forma: Este protótipo de poimênica descrito em João 10 não teria se tornado um poder na história da humanidade, se tivesse permanecido somente mensagem e não tivesse se tornado um poder realmente experimentável:

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Cf. O. PFISTER, Einführung in die praktische Psychoanalyse für Pfarrer und Laien, 1927. In: K. WINLER, Seelsorge, P. 81, nota 6 b. 16 O. BAUMGARTEN, Protestantische Seelsorge, 1931. In: K. WINKLER, Seelsorge, p. 81, nota 7 b.

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9 um poder libertador, total e pessoal, corporal e interior ao mesmo tempo...17 Aqui a poimênica adquire um aspecto individual e relacional com Deus, no sentido de evocar uma experiência única de contato com Cristo. Finalmente Jesus Cristo pode ser visto como aquele que transmite e incorpora uma radicalmente diferente compreensão da realidade. Inspirada por esta compreensão a poimênica deverá tornar possível que as pessoas sejam capazes de enfrentar este mundo de forma crítica e criativa. A base desta relação crítica com a realidade é a proclamação escatológica de Jesus: “A esperança escatológica associada à vinda de Jesus expressa uma relação altamente quebrada com a realidade existente.” 18 A partir desta perspectiva, que coloca Jesus de Nazaré como o fundamento da poimênica cristã, é inaugurada a esperança na transformação da realidade presente, que é experimentada como causadora de dor e sofrimento. Em sua dor e sofrimento na cruz, seguido de sua morte, é simbolizada esta realidade contrária à vontade de Deus. Com sua ressurreição dentre os mortos é aberta a esperança em um mundo transformado, onde dor, sofrimento e morte não têm a última palavra. Neste sentido a poimênica cristã adquire um caráter crítico da realidade experimentada e consolador diante desta realidade ainda marcada pela dor e sofrimento. O ser humano necessita ser transformado para a nova realidade. Esta transformação ocorre mediante o ato da conversão através da penitência, na certeza de poder confiar no Bom Pastor em cada nova situação. Outros aspectos fundamentais para uma noção de poimênica embasada no Novo Testamento são os seguintes: consolar (2 Coríntios 13. 11; 1 Tessalonicenses 4. 18; 5. 11), admoestar (1. Tes 2. 12; 5. 14), corrigir (Gálatas 6.1), auxiliar e ajudar (Filipenses 4. 3), cooperar (1 Co 12. 25) servir uns aos outros (1 Pedro 4. 10). Em especial, cabe mencionar as Cartas Pastorais como exemplo desta preocupação poimênica amorosa e dedicada em relação às comunidades. SCHNEIDER-HARPPRECHT, referindo-se a Thomas BONHOEFFER, destaca que “a palavra paracalein, paraclesis torrna-se o conceito-chave para o aconselhamento pastoral no NT.”19 Este termo pode ter dois significados: admoestação e consolação. Após o acontecimento pascal, o Espírito Santo é derramado sobre os crentes e, dentre outras funções, ele tem este caráter de ser o advogado das pessoas diante de Deus: “A paraclesis chama (as pessoas) para deixarem a sua participação na vida de Cristo a partir do Batismo transformar a sua vida quotidiana e afirmá-la também em situações de sofrimento (2 Co 1. 3 17

Cf. A. D. MÜLLER, Grundriß der Praktischen Theologie, 1954. In: K. WINKLER, op. cit, p. 82, nota 8 a. Cf. T. BONHOEFFER, Ursprung und Wesen des Christentums, 1985. In: K. WINKLER, op. cit, p. 83, nota 9. 19 Cf. Cf. SCHNEIDER-HARPPRECHT, C. Aconselhamento Pastoral. Op. cit., pp. 296. 18

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10 ss.)”. 20 O alvo desta transformação é a verdadeira vida espiritual, também caracterizada com o conceito zoon pneumaticon, i. e. a vida no Espírito em substituição à vida segundo a sarx, ou seja, a vida segundo a carne pecaminosa e mortal. Finalmente, para caracterizar aquilo que Jesus de Nazaré em seu agir e falar mostrou como fundamento da poimênica, cabe destacar a sua autocompreensão, em alusão ao profeta Isaías em Lucas 4. 18-20: “O Senhor me deu o seu Espírito. Ele me escolheu para levar a Boa-Notícia aos pobres e me enviou para anunciar a liberdade aos presos, dar vista aos cegos, libertar os que estão sendo oprimidos e anunciar que chegou o tempo em que o Senhor salvará o seu povo.” 3. Modelos de poimênica na história da Igreja a) Até a era Constantiniana - Constantino I, o Grande (Flavius Valerius Constantinus - 272-337 d.C); - Editos de Tolerância de Milão (313 d.C.); - I Concílio Geral de Nicéia 325 (Credo Nisceno Constantinopolitano); - Tornou Constantinopla a capital do Império Romano (330 d.C.); - Deixou-se batizar somente no seu leito de morte; - Teodósio I – Igreja Cristã torna-se Igreja do Estado Romano (380 d.C.). O período até o surgimento do modelo da Cristandade na época constantiniana é talvez o período mais radical e ao mesmo tempo mais importante na história do cristianismo. É o período no qual a fé cristã passou a sua prova de fogo mais intensa: Ou sobreviveria ou sucumbiria! Em verdade este período é marcado pela “colisão” entre duas visões de mundo.21 A visão inaugurada por Jesus Cristo, subsumida sob a fórmula Reino de Deus e, por outro lado, a visão do império, sob a fórmula “pax romana”. A radicalidade da proposta jesuânica e a conseqüência dos discípulos, apóstolos e das primeiras comunidades cristãs na lealdade a esta proposta inevitavelmente provoca o choque com a ordem estabelecida e mantida pelo Império Romano. A reação do Império Romana a esta proposta consistiu em perseguições, martírio, torturas e morte. Por conseqüência, mais e mais os fiéis à proposta de Cristo se distanciam deste mundo, assim como ele é experimentado. Este mundo é visto como dominado pelo demônio e cresce a consciência de que ele está com os dias contados. A esperança no fim deste mundo, experimentado como sendo do Mal, é traduzida nas visões escatológicas, p. ex., aquelas narradas no livro do Apocalipse: 20 21

Ibidem. Cf. K. WINKLER, Seelsorge, p. 87.

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11 “Então ouvi outra voz do céu, que disse: ‘Saia dessa cidade, meu povo! Saiam todos dela para não tomarem parte nos seus pecados E para não participarem dos seus castigos! Porque os seus pecados estão amontoados até o céu, e Deus se lembra dos seus crimes. Dêem a ela o mesmo trato que ela deu a vocês. Paguem em dobro o que ela fez. Encham a sua taça com bebida duas vezes mais forte do que a bebida que ela preparou para vocês. Dêem a ela tanto sofrimento e tristeza Quanto luxo e glória ela deu a si mesma. Porque ela pensa assim: Estou sentada como rainha! Não sou viúva e nunca mais vou sofrer! Por isso num mesmo dia cairão sobre ela estas pragas: Doença, dor e fome. E ela será queimada no fogo. Porque o Senhor Deus, que a julga, é poderoso.’ ” (Apocalipse 18. 4-8) Como pode se notar, nesta passagem há um vão intransponível entre a consciência dos seguidores da proposta do Reino de Deus anunciada por Jesus e o mundo tal qual ele é experimentado. A relação com o mundo, experimentado como domínio de Belzebu, se torna extremamente ambivalente. Por um lado é necessário continuar firmes como filhos da luz, até que venha a redenção total, mas por outro lado, isto significa que o “príncipe das trevas” poderá tentar estender seu domínio para dentro das próprias comunidades cristãs. O que estava em jogo, portanto, não era apenas a resistência externa e material ao reino das trevas; estava em jogo também a alma, que poderia se tornar alvo dos ataques do maligno. O modelo de poimênica desenvolvido diante desta situação peculiar, que submetia as pessoas a uma prova de resistência – ou manter-se fiel à proposta de Jesus Cristo ou ser arrastado pelas forças do Mal – pode ser caracterizado em quatro aspectos:22 A prática do exorcismo: Através da prática do exorcismo, procurava-se resguardar a pureza das primeiras comunidades cristãs, contra os ataques do demônio e de seus anjos que queria

22

Cf. K. WINKLER, Seelsorge, p. 86 ss.

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12 transformar as pessoas em criaturas sem vontade própria, manipuladas pelos interesses escusos do Mal. A ameaça da condenação eterna: Paralelo às práticas de exorcismo para expulsar o Mal, a prática poimênica neste período também consistia em ameaçar com o Inferno aqueles cristãos que se desviassem do Evangelho ou que caíssem em falsas doutrinas/ideologias ou ainda que não resistissem às tentações deste mundo. Todos estes elementos simbolizavam um constante perigo para a alma e a poimênica definida como cura d’almas procurava salvar estas almas contra os respectivos ataques. A disciplina comunitária: Para resistir às tentações deste mundo buscou-se primeiramente na comunidade um apoio. A edificação de comunidades servia como uma espécie de fortificação para resistir às ameaças externas. Na união dos fiéis estava uma força do tipo “Davi contra Golias” que dava o respaldo para esta posição de oposição fundamental e irrestrita ao mundo tal qual era experimentado. E para manter este caráter de bastião para resguardar a integridade da alma foi estabelecida uma rigorosa disciplina comunitária. A composição do cânon: Simultaneamente era necessário distinguir claramente e categoricamente aquilo que afinal faz parte da fé cristã daquilo que são deturpações e desvios condenáveis. Neste sentido a busca por uma rápida canonização, concluída em meados do segundo século, assegurava uma orientação clara e definida para as comunidades cristãs. Com este passo, uma série de incertezas e ansiedades, quanto à possibilidade real de se viver segundo a orientação cristã eram minimadas. Todos estes passos, entretanto, apesar de terem assegurado um certo equilíbrio e estabilização da psique dos seguidores da proposta do Reino de Deus, não conseguiram evitar que o entusiasmo inicial começasse a esmorecer. Apesar da atuação dos pastores e diáconos nestas frontes tornava-se transparente com o passar dos anos a frustração escatológica. O que dava força para a resistência nos primeiros anos após o evento pascoal era exatamente a perspectiva eminente da párousia. À medida que esta expectativa era frustrada, a força para assegurar a postura de oposição a este mundo, definhava. Como reação a esta tendência de esmorecimento gradativo da motivação, surge a confissão. Inicialmente era previsto apenas um ato geral de confissão durante a vida. Este ato visava corrigir o comportamento e reconduzi-lo a formas moralmente aceitáveis. Mais tarde foi instituído um segundo momento de confissão para duas situações específicas: por desvio da comunidade ou por iminência da morte. O desenvolvimento posterior vai intensificando este ato de confissão em inúmeras situações da vida, a ponto de, na Idade Média, a vida cristã ser caracterizada por uma sucessão de atos de confissão e penitência. Neste sentido pode-se

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13 observar uma tendência que parte de uma poimênica comunitária em direção a uma poimênica individual.23 Como dois exemplos de literatura, característicos deste período, podemos citar o Pastor de Hermas (séc. II) e Clemente de Alexandria (falecido em 215). O Pastor de Hermas em sua obra monumental “O Pastor” (140 d. C.) desenvolve uma espécie de homilia de confissão. A questão fundamental suscitada nesta obra é a seguinte: O que a Igreja e o Pastor (entendido como ‘anjo confessor’), devem proclamar como substitutos para a presença atual de Cristo? Sabedoria e ética, a partir de fontes judaicas e helenistas, é a sua resposta. A perspectiva escatológica continua iminente e cabe aos cristãos, através da confissão, manterem-se purificados para não perder a salvação eterna, quando chegar a hora derradeira. Já Clemente de Alexandria se ocupa com a pergunta como se dá a inserção do Cristão em seu respectivo contexto? Mais especificamente, sua questão diz respeito à possibilidade de uma relativa adaptação do cristão ao mundo que o cerca, a partir da parábola do “Jovem rico” (Marcos 10. 17-20). Sua pergunta é a seguinte: Pode-se crer em Cristo e ao mesmo tempo desfrutar os deleites da riqueza material? Sua resposta é sim, porém, com a ressalva de continuamente submeter-se ao aconselhamento pastoral: Por isso é indispensável que tu, que és importante, rico e poderoso, coloques um homem de Deus em posição superior a ti, o qual te ensina a lutar e que dirige o barco da tua vida. Tema ao menos um, tenha medo ao menos de um único, obedeça ao menos a um, quando este fala francamente contigo e te corrige com todo o rigor e ao mesmo tempo zela amigavelmente por ti. 24 Percebe-se neste contexto um desenvolvimento que gradativamente vai substituindo a dimensão inicial do protesto da fé cristã, por uma atitude de conformidade e adaptação à realidade. Este processo culminará no século IV com o advento do modelo da cristandade, a partir do qual a fé cristã vai se tornar a “religião oficial” do Império Romano. Por outro lado, a atitude crítica em relação ao mundo, tal qual ele é experimentado, é incorporada na figura dos monges do deserto. Cabe mencionar neste contexto Antônio (falecido em 356 e primeiro eremita do qual se tem notícia) que a partir da mesma passagem bíblica tira a seguinte conseqüência: É necessário fugir das ameaças da riqueza e, conseqüentemente, das ameaças da sociedade de sua época em direção ao deserto, longe de todas estas tentações. Seu exemplo foi seguido por muitos outros, os quais foram considerados sábios e que eram procurados para todo tipo de orientação. Assim estes monges

23 24

Cf. K. WINKLER, Seelsorge, p. 91. Apud Klemens von Alexandrien, Welcher Reiche wird gerettet werden? In: Ibidem, p. 94.

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14 ermitões desenvolveram um estilo próprio de poimênica, cujas características são basicamente as seguintes:25 –

O conselho de procurar manter a proximidade a um guia espiritual, que orientará em todas as questões da vida. A obediência a estas orientações preservará dos pecados diante de Deus;



O autêntico guia espiritual pode ser distinguido do falso, porque ele assume uma atitude de sofrimento, dor e tristeza diante do mundo e se dirige a Deus em confissão de culpas;



A ascese permite que se estabeleça uma batalha espiritual para expulsar os demônios que querem dominar a alma através dos artifícios das tentações mundanas. A esta batalha estão expostas todas as pessoas individualmente. Os ascetas, porém, assumem esta luta no lugar dos demais crentes. Assim, manter a proximidade de um santo do deserto, pode significar uma vantagem decisiva neste embate entre as forças do bem e do mal;



As orientações pastorais destes “pais espirituais do deserto” geralmente eram feitas em forma de “frases de efeito” ou provérbios. Este modelo de poimênica vinha ao encontro das expectativas daqueles que buscavam a orientação dos eremitas, pois, muitas vezes estes ditos eram fáceis de ser lembrados e garantiam uma orientação clara para determinadas situações da vida. Veja um exemplo: (Aconselhando) “- Pai, diga-me uma palavra! Como posso alcançar a salvação?” (Conselheiro) “Disse o abade Gregório: Três coisas Deus exige de todo o batizado: uma fé reta de toda a alma, a verdade na ponta da língua, castidade nas coisas do corpo.” 26

b) A partir da era Constantiniana Se na Igreja Primitiva a poimênica tinha como alvo a proteção e a oposição a um mundo hostil e marcado pela perseguição aos cristãos, a partir da era inaugurada por Constantino, na assim chamada Cristandade, a questão da Educação começa a ser o objetivo primordial. Gradativamente começam a ser criadas estruturas paralelas nesta área por parte do Estado e da Igreja. Ao mesmo tempo ocorre uma mudança em relação aos endereçados da ação poimênica: De uma compreensão essencialmente comunitária, passa-se a enfocar cada vez mais o indivíduo. Também o ministério do responsável pelo exercício poimênico começa a ser mais nitidamente definido.27 Os célebres Conselheiros Pastorais no início deste período são os denominados “Três Capadócios”, Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo. Estes três personagens marcaram este período, contribuindo cada qual com uma compreensão específica. 25

Ibidem, p. 94 ss. Apud M. Seitz, in Ibidem, p. 95. 27 K. Winkler, Seelsorge, p. 96. 26

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15 • Basílio de Cesaréia (o Magno, 330-379) A importância deste bispo e metropólita da Capadócia não se resume à sua atuação na definição da Doutrina Trinitária e na criação das ordens monásticas da Igreja Oriental. Sua importância, no contexto da poimênica, se deve à sua perspectiva de relacionar a responsabilidade pela saúde espiritual dos seus fiéis ao engajamento social. Por um lado, sua compreensão de discipulado passa pela indicação de uma vida regrada e asceta. Para tal é necessária a penitência. Assim ele introduz na Igreja Oriental a obrigatoriedade da penitência para os fiéis. Por outro lado, ele acentua e apela à consciência social dos cristãos. Sob sua atuação foram criadas instituições de ajuda aos pobres e hospitais. Basílio inaugura uma visão clínica da poimênica, na qual vê uma íntima relação entre saúde física e espiritual: Na confissão de culpas, ocorre algo semelhante ao que acontece na detecção de doenças físicas. Assim como as pessoas não tornam públicas todas as suas doenças e também não o fazem ao primeiro que encontram, mas somente àquele que entende de curas, assim também a manifestação do pecado deve acontecer somente diante daqueles que também podem curá-los.28 Como tema da poimênica é importante também destacar o centro da sua proclamação do Evangelho: a questão do apego aos bens materiais, como geradora de problemas na saúde física e espiritual. A parábola do “Jovem Rico” é interpretada por Basílio em uma de suas homilias aos fiéis da seguinte maneira: Não é somente por causa das roupas ou da comida que a riqueza é cobiçada pela maioria (das pessoas); trata-se muito mais de uma tática engenhada pelo Diabo, a qual coloca diante dos ricos milhares de oportunidades como desculpas, assim que eles finalmente almejam pelo supérfluo e desnecessário como algo imprescindível e não conseguem mais parar de fazer exigências em relação à vida. É como com os beberrões: Quanto mais vinho lhes é dado, tanto mais intensa fica sua tendência de beber. Assim também os já ricos novos ricos exigem, quanto mais eles têm, ainda mais e alimentam assim, com o respectivo enriquecimento, somente ainda mais sua doença, de forma que sua busca redunda no contrário.29 A posição fundamental de Basílio neste sentido é de associar qualquer postura de adaptação ao mundo, como uma atitude por princípio doentia e marcada pelo vício e pela dependência. • Gregório de Nissa (irmão de Basílio, 330-395)

28 29

Cf. Ibidem, p. 97. Cf. Ibidem, p. 97s.

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16 Também para Gregório, a questão fundamental agora é definir o papel dos cristãos num mundo, onde Igreja e Estado falam a mesma língua. Assim sua compreensão poimênica avança cada vez mais em direção ao indivíduo que passou a integrar a comunidade cristã. Este cristão individual é visto como um ser composto de razão e de cobiça e da conseqüente decadência. Isto tudo culmina num quadro caracterizado pelo pecado. Gregório passa então a descrever até os mínimos detalhes todos os atos pecaminosos praticados pelos indivíduos. Ele compõe escalas, onde cada categoria de pecado recebe uma rubrica e, por conseguinte estabelece uma escala de atitudes de penitência que lenta e gradativamente poderiam culminar na reintegração do indivíduo à comunidade. O desvio da comunidade por causa do pecado e o lento e longo processo de reintegração pode demorar anos. O primeiro passo é poder voltar a participar dos cultos comunitários: No início, somente como ouvinte, e, se preenchidos uma série de requisitos de penitência, depois de um tempo pré-determinado, poderá tomar parte nas orações. Caso tudo tenha sido feito de forma séria, então, finalmente, após outro período de espera penitente, o indivíduo poderá voltar a fazer parte da Santa Ceia. Podemos começar a falar aqui da tendência, que mais tarde foi acirrada na história da Igreja Medieval, de controlar as atitudes individuais através de um rigoroso programa de disciplina eclesiástica (Kirchenzucht). No lugar da penitência individual, com punições que o próprio indivíduo se aplicava, agora começa a surgir a penitência e a punição pública, onde a Igreja, que aos poucos vai equivalendo ao Estado, aplica os respectivos castigos. K. WINKLER destaca dois aspectos centrais nesta perspectiva poimênica desencadeada por Gregório de Nissa: a) O longo processo de reconciliação ao qual era submetido o indivíduo que se desviou e que culmina na reintegração à Ceia comunitária, equivale a um processo terapêutico, onde aos poucos a pessoa vai avançando em direção à cura; b) Este processo equivale a uma intervenção pedagógica por parte da comunidade que vai mostrando ao indivíduo, onde precisamente se encontra no processo de penitência. Os estágios desta recuperação são selados ritualmente pela respectiva participação nos cultos e na Santa Ceia.30 •

Gregório de Nazianzo (329/30 - 390/91)

O terceiro dos Três Capadócios foi amigo e colega de estudos de Basílio. Sua preocupação parte da noção de que não é a mesma coisa, cuidar de um rebanho de ovelhas e rezes, ou conduzir uma alma. A tensão presente nesta função está entre ir ao encontro das expectativas da comunidade e ao mesmo tempo manter-se em fiel obediência a Deus. 30

Ibidem, p. 98.

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17 A partir deste pano de fundo Gregório compõe a primeira Teologia Pastoral. Duas concepções básicas são desenvolvidas nesta obra: a) A poimênica tem como ponto de partida, assim como em Basílio, uma compreensão clínica/médica: As pessoas adoecem, porque no redemoinho da vida mundana, elas se distanciam da paz divina.31 b) A compreensão antropológica de que as pessoas reagem no âmbito teológico-pastoral de forma singular: Uma pessoa não é igual à outra. Isto significa que o Pastor deve levar em conta a singularidade das atitudes de cada pessoa, o que naturalmente torna o trabalho pastoral mais complicado. Também em Gregório está intimamente vinculada à ação poimênica, a ação social e o empenho pelos pobres: Aprenda do infortúnio do próximo! Mesmo que dês pouco ao necessitado, não é somente pouco àquele que carece de tudo, assim como também não o é aos olhos de Deus, à medida que isso corresponde à sua vontade. Se tu não tens grande dádiva, então mostres boa vontade! Se não tens nada, assim oferte tuas lágrimas! Misericórdia que vem do coração traz grande descanso ao infortunado. Sincera compaixão é um grande alívio na miséria.32 Além da marcante atuação dos Padres Capadócios precisam ser destacados outros nomes fundamentais, quando se fala em poimênica na passagem da era antiga ao período medieval.33 São eles: Agostinho (354-430), Benedito de Núrsia (480-560), Gregório I (Magno 540-604), Bernardo de Claraval (1090-1153), Hildegarda de Bingen (1098-1179), Mestre Eckart (1260-1328), Thomas de Kempis (1380-1471). Os temas da poimênica abordados, são agrupados por K. Winkler basicamente na disputa teórica com filosofias e visões-de-mundo distintas da fé cristã; a preocupação em relação a uma poimênica voltada àqueles que a exercem e a preocupação com a própria alma; o exercício de poder e a formulação das regras monásticas. Determinante para a noção de poimênica no período medieval é a questão do exercício do poder e a formulação das regras monásticas. Este desenvolvimento começa com o líber regulae pastoralis (Livro de regras Pastorais) do Papa Gregório I (o Magno: 540-604). O livro é “uma coletânea de casos pastorais que se tornou durante um milênio a instrução básica para cada pastor.” 34 Consistia em oferecer um referencial para que o pastor pudesse examinar a vida das pessoas a partir da pergunta pelos desvios de uma moral religiosamente aceitável. Seu modelo de Confissão tornou-se prática comum até a Reforma: contritio – confessio – satisfactio.

31

Ibidem, p. 99. Ibidem, p. 99s. 33 No âmbito desta preleção só será possível destacar alguns aspectos. Para um maior aprofundamento sugere-se a leitura de K. Winkler, Seelsorge, p. 100-109. 34 Cf. Cf. SCHNEIDER-HARPRECHT, C. Aconselhamento Pastoral. Op. cit., p. 298. 32

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18 Esta intenção poimênica foi aprofundada com o surgimento da poenitentialia. O monge celta Columbano de Luxeuil (falecido em 615 d. C.) elaborou uma série de regras e exigências morais severas para a vida atrás dos muros dos conventos e mosteiros, mas que também se tornaram imperativas para a vida fora destes. Estas regras foram reunidas em livros, denominados Poenitentialia. Havia neles uma relação detalhada de pecados concretos, tais como práticas de violência, tanto de religiosos, quanto de leigos, depravações sexuais, gula e bebedeiras, prática de cultos e ritos pagãos...35 De acordo com a natureza e a gravidade dos pecados, era sugerida uma rigorosa e demorada prática de penitência que poderia ser intensificada por prescrições de jejum, de exigência de práticas de caridade, até à expulsão da pátria e o ingresso em mosteiros e conventos. A confissão de pecados torna-se assim a instância controladora de desvios individuais e a penitência se torna o meio para expiar as conseqüências do mal praticado. Esta tendência foi acentuada pelo teólogo Alkuin (730-804) que acirrou ainda mais as exigências de confissão de culpas e a respectiva prescrição de atos de penitência. O Imperador Carlos Magno percebe nesta noção de poimênica um potencial político para disciplinar as massas e a exige que todo o pastor da Igreja possua uma Poenitentialia e atenda os pedidos de Confissão de Culpas. Finalmente, em 1215, no IV Concílio Ecumênico de Latrão foi decidido que cada cristão tem o dever de confessar-se diante de um padre, pelo menos uma vez por ano, para então receber a Eucaristia.

35

Cf. K. Winkler, op. cit., p. 111.

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19 c) Na Reforma A Reforma Protestante do século XV somente pode ser compreendida a partir deste pano de fundo da igreja medieval. Como tal, ela adquire o papel de um movimento de poimênica36, cujo objetivo central é a mudança na maneira de ser Igreja. Martim Lutero encabeçou esta Reforma e por isso pode ser considerado o inaugurador de uma práxis poimênica que rompe com a visão medieval e introduz uma concepção moderna de poimênica. Todos os dramas psíquicos, aos quais as pessoas estavam expostas durante o período medieval, também foram enfrentados por Lutero, tanto no papel de monge, quanto no papel de padre confessor. Enquanto monge, Lutero buscava a justificação em práticas de penitência e, como confessor, ouvia os segredos mais íntimos das pessoas e lhes prescrevia as respectivas atitudes penitenciais, conforme o receituário da igreja. Sua consciência, porém não sossegava, sob o peso de um Deus que ameaça e castiga. Com a alma atribulada por constantes tentações que ameaçam a sua integridade perante este Deus severo e despótico, Lutero procura o seu confessor João de Staupitz e clamava mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Diante da angústia do confrade da Ordem dos Agostinianos, João procurava uma palavra que pudesse libertá-lo do sofrimento psíquico pelo qual passava e lhe respondia: - Tolo, não é Deus que está zangado contigo, mas tu com Deus.37 Nestas palavras, Lutero sentiu pela primeira vez a maravilhosa BoaNova. Mesmo assim, Lutero continuava aflito, sob as práticas penitenciais às quais se submetia. E novamente é uma palavra do seu confessor que lhe soa como uma voz do céu: A penitência somente é válida, se ela toma como ponto de partida o amor à justiça e a Deus. E este é propriamente o começo da penitência e não o fim e a consumação, como julgam aqueles outros.38 Em um outro diálogo João confronta o confrade Lutero com as seguintes palavras: Na verdade tu não queres ser um verdadeiro pecador; tu queres, isto sim, ser justo antes de receber o perdão.39 Temos aí já o primeiro impulso daquilo que levará Lutero mais tarde a desenvolver a doutrina da justificação. Precisamente aí ocorre a grande mudança na compreensão poimênica. Todo o esforço e sacrifício contido nos atos penitenciais prescritos pela concepção medieval de poimênica nada mais eram do que uma forma de querer alcançar pelas próprias forças a justificação. E isto levava ao desespero, porque a tão buscada libertação não podia ser alcançada, mesmo 36

Id. Ibidem, p. 110. Cf. T. Brandt, Luther als Seelsorger, p. 28. 38 Id. Ibidem, p. 29. 39 Id. Ibidem, p. 30. 37

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20 mediante os mais severos castigos. Na redescoberta do Deus da graça e do amor, a pessoa atordoada poderá encontrar o alívio e o consolo tão veemente buscados. Neste sentido, LUTERO inverte a lógica do perdão dos pecados. O perdão não é uma conseqüência de diversos atos penitenciais, mas é anterior a qualquer ação humana. É pela graça e pelo amor de Deus que nós já estamos justificados e por isso somos libertos para viver em gratidão, segundo a sua vontade. Isto, entretanto, nem sempre ocorre por causa da luta de forças antagônicas em nós (simul justus et peccator). Por isso, é necessário diariamente renovar o novo ser humano em nós, recebido como dádiva pelo Batismo, através da Confissão de Culpas diretamente diante de Deus. O ato de penitência perde o seu sentido sacramental, no sentido de impor uma mediação clerical. Por outro lado, com a eliminação desta mediação hierárquica, agora todo o crente passa a ter a função sacerdotal, expressa na fórmula do Sacerdócio Geral de todos os Crentes. Cabe a cada Cristão a tarefa de ouvir a Confissão e proclamar o perdão dos pecados, o que Lutero chamou de mutuum colloquium et consolationem fratrum.40 SCHNEIDER-HARPPRECHT resume da seguinte maneira esta compreensão: Na vida de cada dia da comunidade os irmãos conversam um com o outro sobre as suas dificuldades e confessam quando erram ou transgrediram os mandamentos. O irmão vai ouvi-los e consolá-los pela mensagem da absolvição, pela palavra de Deus e pela oração. A consolação como objetivo maior da poimênica, estabelece de novo a identidade precária lembrando a pessoa da sua justificação por Deus. 41 O consolo 42 da consciência atordoada, ao invés do castigo, passa a ser o elemento fundamental da poimênica cristã. No diálogo mútuo entre os crentes abra-se o espaço para a consolação fraterna. Cabe, porém, salientar, que o caráter inovador e transformador desta concepção, aos poucos foi sendo suplantado por um sistema mais controlador e pastorcêntrico, a partir das disputas com os movimentos entusiastas. Ao introduzir um exame de fé para a admissão à Santa Ceia, volta a ter destaque o caráter disciplinador da poimênica, como já vinha sendo praticado em tempos anteriores. Este também passa a ser o centro das concepções dos reformadores suíços Zwinglio, Bucer e Calvino. Finalmente para se ter uma idéia da forma como LUTERO procurava consolar os irmãos aflitos, K. WINKLER cita um exemplo da conversa com o doente Frederico, o Sábio, a partir de sua obra de 1519, Quatorze consolações para cansados e sobrecarregados: Eu não posso ocultar, que de teu corpo e de tua carne escuto a voz de Cristo clamando a mim e me dizendo: Veja, sou eu que estou aqui deitado 40

Cf. Martinho LUTERO, Os Artigos de Esmalcade, p. 332, p. 55. Cf. C. SCHNEIDER-HARPPRECHT, op. cit., p. 300. 42 SCHNEIDER-HARPRECHT, entretanto, adverte para que não se confunda Trost (consolo) com Vertröstung (algo como uma oferta de alívio superficial). Cf. C. SCHNEIDER-HARPPRECHT, Trost in der Seelsorge, Stuttgart: 1989, p. 341. 41

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21 doente! Pois, um tal mal, como doenças, e outras coisas parecidas, não sofremos nós cristãos, mas o próprio Cristo, nosso Senhor e Salvador, em quem nós vivemos. 43

43

Cf. K. WINKLER, op. cit., p. 113.

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22 d) Na Modernidade No período desde o Pietismo até o Racionalismo, duas posições marcam a discussão em torno da poimênica: No Pietismo, o centro da ação poimênica volta-se à vivência subjetiva da mensagem da salvação.44 Com isso todas as formas vazias de confissão praticadas pela igreja institucionalizada são combatidas e rejeitadas. No seu lugar é acentuada a compreensão, segundo a qual a poimênica acontece na relação de uma pessoa com a outra, no intuito de influenciá-la na sua vida cotidiana e de fé, a caminho da cura/salvação. Nos conventículos, grupos compostos por frades e irmãs leigas, são exercitados o conselho e a ação concreta de ajuda. Por outro lado, posteriormente (fim do século XVIII), no período denominado de Iluminismo ou Racionalismo, a imagem que norteia o exercício poimênico é a do professor, que ensina sabedoria e virtude. A compreensão antropológica é que o ser humano precisa encontrar-se a si mesmo, para a condução de uma vida plena. Isto significa que a pessoa precisa ser respeitada e não coagida a assumir determinada espiritualidade, como requerem os pietistas. O que se pretende, é transmitir uma religiosidade que se preocupa com a vida digna, a partir da razão e do esclarecimento. Poimênica passa a ser uma relação amigável que respeita a privacidade de cada pessoa e procura, através de conversas cordiais,45 esclarecer e iluminar dúvidas importantes para uma vida digna e realizada. Já no final do século XIX, com o advento da Psicologia, duas concepções fundamentalmente conflitivas passam a delimitar a discussão em torno da poimênica, as quais permanecem atuais e latentes nas diferentes posições até hoje: Por um lado, concepções de caráter liberal e racional que buscam conhecimentos psicológicos, a auto-experiência do pastor e a proximidade com a empiria, e (por outro lado) concepções que defendem a primazia da proclamação da Palavra e diminuem ou negam o valor da contribuição da psicoterapia. 46 Paradigmáticos para estas duas concepções fundamentalmente opostas são as escolas do Movimento de Clínica Pastoral (BOISEN, BRYAN, DICKS, CABOT) e, por outro lado, da Teologia Dialética/Querigmática (THURNEYSEN, ASSMUSSEN). A primeira repercutiu na Europa, através da união com outra escola surgida do pioneirismo da relação entre o Pastor O. PFISTER e o Psicólogo S. FREUD, que veio a ser chamada Psicologia Pastoral. 4. Concepções Recentes a) Poimênica na perspectiva bíblico-teológico-sistemática: relação Deus – ser humano • Eduard Thurneysen (1888-1974)

44

Id., Ibidem, p. 121. Cf. K. WINKLER, Op. Cit., p. 129. 46 Cf. C. SCHNEIDER-HARPPRECHT, Op. Cit., p. 301-302. 45

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23 Karl BARTH e Eduard THURNEYSEN formaram um par de amigos e vizinhos pastores durante suas vidas. Para BARTH, a poimênica é um serviço como qualquer outro na comunidade. Sobre a poimênica propriamente dita, BARTH se manifestou muito pouco. Esta tarefa ele confiou ao seu colega e amigo THURNEYSEN. Ambos provém da práxis, pois atuavam em comunidades vizinhas (Safenwil e Leutwil). Viviam, portanto, próximos e se influenciavam mutuamente. Tanto, que a concepção de poimênica elaborada por THURNEYSEN não pode ser pensada, sem o respaldo teológico-sistemático da Teologia Dialética de K. BARTH. A atitude fundamental de ambos visa contrapor à teologia natural, com a racionalidade típica do espírito da época, um corretivo, teologicamente independente e fundamentado na revelação de Deus. Há uma discrepância fundamental entre a religiosidade cultivada pelas pessoas e a verdade desafiadora da Palavra de Deus, revelada em Jesus Cristo e salvaguardada na Bíblia. Em três obras clássicas THURNEYSEN compõe seu pensamento: Grundlegung der Poimenik (1928); Die Lehre von der Seelsorge (1948) e Seelsorge im Vollzug (1968). Duas premissas fundamentais norteiam sua concepção: A Diástase: “Deus está no céu e tu estás na terra” e o Triunfo da Graça.47 Diástase: Poimênica acontece na Igreja como transmissão (Ausrichtung) da Palavra de Deus ao indivíduo. Seu contemporâneo luterano Hans ASSMUSSEN diz similarmente que poimênica é a proclamação da Palavra de Deus ao indivíduo: A compreensão implícita é que a proclamação da Palavra de Deus não se restringe à prédica. Ela também acontece na catequese, no culto e na edificação de comunidade. Aquilo que na prédica é endereçado a todos, na poimênica é endereçado ao indivíduo. Sua função é a de conduzir o indivíduo até a Palavra de Deus. Isto a torna uma complementação constitutiva da pregação. Por outro lado a poimênica vigia para que a força da Palavra de Deus advinda de sua reta pregação e da administração dos Sacramentos realmente atue nos membros individuais do corpo de Cristo. Isto a torna também uma complementação constitutiva da catequese, ou melhor da disciplina eclesiástica (Kirchenzucht). A exortação dos indivíduos visa preservá-los da decadência moral e assegurar a construção de uma comunidade viva. Triunfo da Graça: A Poimênica, especificamente, é um ato de perdão e cura das pessoas para Deus: O pecado precisa morrer e a pessoa precisa ser acordada para uma nova vida. A premissa antropológico-bíblica que norteia o seu pensamento é que o ser humano é criatura composta numa unidade entre corpo e alma. Porém, fundamentalmente, ele é pecador: Nada no ser humano, nem a própria alma, pode a partir de si mesmo, achar o caminho que leva a Deus. Somente a partir da graça de Deus, através de Jesus Cristo, o ser humano é transplantado numa 47

Cf. K. WINKLER, op. cit., p. 28-46.

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24 nova esfera: a do perdão. Assim ele é curado e esta cura irá determiná-lo existencialmente. Ou como formula o próprio autor: Poimênica não é a preocupação com a alma do ser humano, mas preocupação com o ser humano, enquanto alma. E nós entendemos isto da seguinte maneira: o ser humano é visto, a partir da justificação, como aquele que é interpelado por Deus através de Jesus Cristo. Esta visão de ser humano como alguém, sobre o qual Deus estendeu a sua mão, é o primeiro ato de toda e qualquer poimênica. Esta visão não tem nada a ver – e isso precisa ser dito inicialmente com toda a clareza – com qualquer compreensão psicológica.48 A forma como esta poimênica se realiza é a Conversa. Não é, no entanto, uma conversa como qualquer outra, pois nesta é tratada a Palavra de Deus. Por esta propriedade de ser a Palavra de Deus que nos interpela extra nos, ela mesma, por sua força intrínseca se faz ouvir. Ela independe da qualidade das pessoas para que seja ouvida ou anunciada. Neste sentido, tanto conselheiro quanto aconselhando se encontram num mesmo patamar diante da Palavra de Deus: A partir do seu encontro com Deus eles também se encontram mutuamente. Esta conversa tem outra característica fundamental, que a distingue de uma conversa ocasional: A quebra (Bruch) na conversa de caráter poimênico, que corresponde à diástase entre Deus-ser humano. A proclamação da Palavra de Deus somente acontecerá no momento em que a conversa humana for interrompida. Neste sentido a conversa poimênica acontece em dois atos: o ouvir e o proclamar. Naturalmente também é plausível para THURNEYSEN que haja resistência por parte do aconselhando no momento de passar para este outro nível na conversa (do imanente ao transcendente). Assim a conversa se torna uma batalha (Kampfgespräch), na qual se procura impor o juízo de Deus para a cura da pessoa. Em seu livro Seelsorge im Vollzug (1968), THURNEYSEN, corrige algumas noções: Também a situação do aconselhando é importante. Porém, respeitar a situação do aconselhando não deveria significar a pregação de um outro evangelho. Como a Palavra de Deus quer penetrar na vida da pessoa abordada no aconselhamento, é necessário também conhecer as pessoas. Para tal, a Psicologia e a Psicoterapia se tornam ciências auxiliares, pois permitem este conhecimento prévio. Afora isso, também o autoconhecimento, o contato com outras pessoas, e as expressões de vida, presentes na literatura, são fontes para este conhecimento do ser humano. Especialmente uma psicologia empírica e livre de especulações de natureza filosófica pode ser um grande auxílio.49 Porém a Psicologia tem seus limites: o verdadeiro conhecimento do ser humano vem da Bíblia, pois ali o ser humano é caracterizado a partir da sua dependência de Deus.

48 49

Cf. K. WINKLER, apud, op. cit., p. 155. Cf. E. THURNEYSEN, Die Lehre von der Seelsorge, p. 192.

Prof. Dr. Sidnei Vilmar Noé

25 A relação entre Psicoterapia e Poimênica é exemplificada a partir da relação entre doença e pecado: O ser humano é doente diante de Deus e em Deus. Há uma relação a partir da fé entre doença e pecado. A doença é um sinal do juízo de Deus para o pecado. O seu reverso, a cura, é sinal da graça de Deus, de perdão dos pecados. É a partir da fé que ocorre esta relação: A pessoa que crê, vê na sua doença uma relação com Deus. Por outro lado, quem não crê está fora desta compreensão. Assim pode haver perdão de pecados, sem que a doença seja curada e também pode haver cura da doença, sem contudo, alcançar o perdão dos pecados. A verdadeira cura, porém, se dá quando esta é assimilada como dádiva de Deus pela fé e, conseqüentemente, for experimentado o perdão dos pecados. Para atingir este estado de cura, de bênção e graça é fundamental a confissão de culpas (Beichte). O pecado é uma força poderosa alheia a nós. Com moralismos ou com outras armas humanas não é possível combater o seu poderio. Somente a força libertadora do Evangelho pode vencer este poder fulminante. Com isso a confissão se torna sinônima da poimênica. Ela está no centro da poimênica autêntica e libertadora. Nem sempre, porém, a conversa atingirá este patamar, mas ela sempre terá a intenção de atingir este alvo. Também a oração ocupa um lugar destacado: Raramente haverá uma conversa de caráter poimênico sem que a certa altura o conselheiro peça ao aconselhando: Você reza? Esta oração adquire três formas: oração para mim, como conselheiro(a), oração de intercessão e oração com o outro. Para se ter uma noção do tipo de condução de uma conversa poimênica, cito um exemplo trazido pelo próprio THURNEYSEN: Um jovem sai de sua casa para o exterior, para aprender uma nova língua. Ele é acadêmico e trabalha numa loja, onde tem a função de vender medicamentos. É um rapaz sério, freqüentador de Igreja. Isto fez com que até agora ele não se envolvesse em quaisquer “namoricos” ou aventuras amorosas. Agora, entretanto, ele pensa em buscar para si companheira de vida. Uma moça entra em sua loja, ele a atende e, como num raio, passa pela sua cabeça: Ela é a pessoa certa! Quer dizer, amor à primeira vista! Ela é uma moça graciosa e inteligente. Ambos vão se conhecendo e surge sinceramente (erwacht) entre ambos um profundo amor. Porém surgem dificuldades. Os pais do jovem são contra esta relação. Eles têm outros planos para o filho. Eu aconselhei estes dois jovens. Acontece o casamento e lhes é dada uma criança. Eu os perco de vista, porque eles moram fora da cidade. Após alguns anos eu encontro a jovem esposa na estação ferroviária de Berna. Ela me olha de um modo triste. O casamento foi desfeito por uma série de razões externas, as quais eu aqui não quero detalhar. A causa principal, no entanto, foi a seguinte: O amor do marido pela sua esposa, anteriormente tão desejada e sob sacrifícios conquistada, havia se apagado (erloschen). Faltou o alicerce mais profundo do matrimônio na fé. O amor era fervoroso, mas ele não possuía chão para as raízes. As desavenças que foram se avolumando não podiam ser superadas. Se ambos não tivessem se unido somente no Eros, mas na fé, então o Prof. Dr. Sidnei Vilmar Noé

26 casamento não teria se rompido. O insondável coração é imprevisível e assim pode acontecer que a partir de relativamente pequenas e superáveis diferenças, se abra um abismo profundo, sobre o qual não há mais nenhuma ponte.50

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Cf. E. THURNEYSEN, Seelsorge im Vollzug, 1968, p. 124 s.

Prof. Dr. Sidnei Vilmar Noé