Por que, afinal, matamos? - Livraria Martins Fontes

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ágora, palco de uma discussão acerca do crime e sobre aquilo que leva o ..... razão do saber: uma aventura perigosa que exige habilidade, entusiasmo.
Por que, afinal, matamos? Francisco Ramos de Farias

Capítulo I   |  rastros e escombros

O que não me faz morrer me torna mais forte. f. nietzsche

Prezado leitor... Procurai a luz: estamos ofuscados em plenas trevas! Gostaria de convocá-lo a acompanhar-me numa empreitada nada fácil: sigamos por caminhos sinuosos, através de bosques escuros, para uma ágora, palco de uma discussão acerca do crime e sobre aquilo que leva o homem a praticá-lo. Esperamos a partir do adentrar no universo das práticas criminosas poder entender essa peculiaridade da condição humana, tão familiar e tão estranha, especialmente quando tomamos o desejo como eixo das nossas interpretações. O homem deseja o crime? E se o deseja por que o realiza? Caso haja a realização, esta poderia ser uma estratégia visando à satisfação? Indagações inquietantes, principalmente quando pensamos na determinação do crime considerando os vetores que nos foram deixados no legado freudiano, relativo à dimensão trágica do existir, destacando-se a potência para a destruição! Que o homem traga na sua história a história do crime não é nenhuma novidade. Da mesma forma que convoquei o leitor para acompanhar-me no curso de minhas elaborações, estaria agora convocando a Psicanálise em sua grande contribuição sobre a temática na construção do mito do assassinato do pai, crime mítico que origina a cultura. A invenção do mito científico freudiano não selou definitivamente a questão. Ao contrário, na aurora do terceiro milênio, ainda nos é intrigante pensar por que o homem decide se engajar em práticas funestas, em rituais macabros e em silêncios sombrios. Eis a razão de ser deste estudo que nos lança, como num sonho dantesco, frente a um dos pórticos do inferno, o que se concretizou pela escuta sistemática de historiais de criminosos sobre seus crimes, realizada nas unidades prisionais Milton Dias Moreira e Hélio Gomes, na execução do projeto de pesquisa O ato criminoso como modalidade de gozo. Agora, não 13

podemos mais recuar: lugares lúgubres, palavras abortadas, odores fétidos, restos horríficos já se encontram avolumados diante de nós. Procuremos uma fresta para sair do mundo obscuro do inferno e encontrar a luz das estrelas, como nos sugeriu Dante Alighieri.1 Estranha forma de escrita a que começa por uma advertência: não tive como fazê-lo de outra maneira. Em relação à temática em pauta, gostaria imensamente que não tivesse nem a aparência, tampouco a essência, de um libelo de ataque ou de defesa a todos os que se apresentam à lei através das mais extremas formas de atividades sacrificiais. Por outro lado, também não tenho a intenção de transformá-la numa elegia para aqueles que conheceram seu próprio fim e penetraram nas mais terríveis trevas por quaisquer modalidades que ultrapassaram o limite do suportável. No entanto, quero salientar que tanto os criminosos como as vítimas têm nesse estudo o seu lugar, à medida que, pelos rastros deixados e pelos discursos produzidos, nos possibilitaram realizar uma leitura sobre a criminalidade. Tomei todo o cuidado para não esquecer as vítimas de tragédias, de carnificinas, de chacinas e de extermínios que são banalizadas no nosso cotidiano, não no sentido de sacralizá-las. Àqueles que tiveram de passar pela experiência de perda de entes queridos por esses métodos brutais, destino toda minha solidariedade. Espero, antes de tudo, que esta escrita seja, nos limites em que pude fazê-la, uma mensagem ao sofrimento, seja o daqueles que conheceram de perto o último acontecimento da vida, seja o de pessoas, de uma maneira ou de outra, diretamente afetadas por tais ocorrências. Mas tampouco deixarei de me dirigir também aos criminosos que conheceram de perto o limite do suportável sofrido pelo semelhante, mas que acreditavam malogradamente encontrar, num engendrar trágico, o sentido da existência. Por isso, esta escrita traz à baila nuanças do existir humano que somente podemos caracterizar pela rudeza e crueza. Embora datem da própria história do homem, as ocorrências relacionadas à criminalidade têm no contexto atual o mesmo destino e tratamento direcionados a algumas questões: a diluição, em discursos fragmentados que acabam por conferir ao crime a significação de banalidade e de naturalidade. Os crimes, a violência, a crueldade, a usurpação de direitos, o desconhecimento e o ódio ao semelhante, bem como a tirania, são matizes que colorem o nosso tempo, sendo objeto de tratamento pela diversidade 1

ALIGHIERI, D. A divina comédia (1308). São Paulo: Círculo do Livro, s/d.

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dos saberes científicos, unânimes em apontar uma causa para todas essas ocorrências: o desfalecimento e a morte do pai, o desmoronamento de princípios, com a catástrofe que conhecemos pelo ataque à condição de filiação e de cidadania. Nesse sentido, estudar a criminalidade à luz das divisas que marcam o nosso tempo é entrar numa espécie de intimidade temida e assustadora, pois, ao que parece, temos a hercúlea tarefa de conceber aquilo que, à primeira vista, parece inconcebível. De outro modo: de que maneira um crime pode ser inserido no conjunto de ocorrências daquilo que denominamos existência? Como o insustentável do crime tem atravessado séculos e milênios para se afigurar ainda entre nós? Qual a serventia que a humanidade retira da criminalidade? Questões, sem dúvida, complexas e embaraçosas. Na tentativa de enfrentar os desafios a que nos propomos quando penetramos no universo da criminalidade, tivemos de buscar esteios que servissem de suporte às nossas indagações. Fizemos uma escolha, aliás, duas: a escolha de uma temática de estudo e a escolha pelos balizadores kantianos encontrados na Crítica da razão prática,2 os quais são enunciados como três interrogantes fundamentais em relação ao saber, à ação e à expectativa. Em primeiro lugar, tivemos de nos indagar sobre o que podemos saber acerca do crime, do criminoso, da criminalidade e dos aparatos sociais que lhes servem de suporte. Em seguida, nos defrontamos com o ponto espinhoso de saber o que iríamos fazer com o conhecimento obtido, além de qual retorno estaríamos dando ao social através da presente investigação. Por fim, atentamos para nossas expectativas num estudo dessa natureza. Não podemos dizer que nada esperávamos desde o início, pois sabíamos de nossa pretensão em chegar a algum lugar. Mas como nos guiamos por questões de ordem ética, tivemos de recuar várias vezes para que pudéssemos repensar muitas das nossas questões e até mesmo desistir de algumas metas preconizadas, pois o que nos mobilizou em direção ao saber nos colocou frente à linguagem: constatamos que somente seria por esse veio que se daria nosso acesso ao criminoso. Ou seja, o que poderíamos saber é apenas alguma coisa que se estrutura no discurso. Aliás, não podíamos saber “nada que não tenha a estrutura de linguagem, de onde resulta que até onde irei nesse limite, é uma questão de lógica”.3 Sendo 2

KANT, I. Crítica da razão prática (1788). Lisboa: Edições 70, 1989.

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LACAN, J. Televisão (1974). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 65.

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assim, nos colocamos diante de um cruzamento difícil: o que um estudo dessa natureza pode produzir em termos de saber que tenha um reflexo direto no modo de pensar o criminoso e a criminalidade? Por que o crime sustenta uma modalidade de saber, uma evidência de verdade ou uma falha na rede de amarração do sujeito? Frente ao estado de coisas que se afigurava diante de nós, nos advertíamos constantemente, quando interrogados pelos criminosos, pelos encarregados do cárcere e pelos estudiosos de áreas afins, em relação ao que poderíamos fazer. Como responder a questão de tamanha complexidade? Pensemos: nosso direcionamento é ético. Uma investigação fundada numa tessitura de linguagem nos possibilita extrair produções discursivas a respeito do crime. Assim, aquele que se disponha voluntariamente a falar do crime estará tentando de alguma maneira produzir uma modalidade de dizê-lo, de circunscrevê-lo num contexto a partir do qual poderemos realizar leituras. Pela vertente do dizer, das vivas palavras saídas das bocas dos criminosos, tentamos extrair argumentos para que esse dizer não seja somente uma modalidade de gozo, tampouco para que formulássemos regras morais para defendê-los ou atacá-los. Convocamos aqueles que quiseram se engajar conosco na nossa empreitada ao exercício da produção discursiva sobre o crime, a criminalidade, a violência e a crueldade. Encontramos colaboradores que acreditaram no destino que poderíamos dar às suas palavras. Nosso grande espanto foi pensar por que se prontificaram, já que a colaboração prestada em nada minimizaria suas condenações? O que esperavam do que falavam e o que esperavam de nós, já que prometíamos pensar o crime a partir de outras bases? Estavam assentadas as nossas esperanças, no campo do desejo, numa espécie de entusiasmo que partiu de uma inquietação nascida do desejo inconsciente. Não era nossa intenção o deslumbramento frente às ocorrências que nos eram pouco a pouco relatadas, embora exercessem um fascínio irresistível. Sabíamos que nosso caminho era delimitado por estreitas e às vezes intransponíveis margens, seja pelo código do silêncio, seja pelo freio em relação ao amor e enfim pelas formas com que fomos constantemente afetados pelo saber que nos era fornecido sobre determinadas ocorrências. Assim fica caracterizada nossa investigação, que somente agora acreditamos ter tido como motor algo da curiosidade própria do neurótico, pois “o neurótico é um inocente: ele quer saber”.4 Então buscamos saber; saber sobre a vida, so4

LACAN, J. L’identification (1962/1963). Seminário de 14/3/1962.

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bre o viver, sobre a morte, sobre o matar e também sobre a maneira como todas essas ocorrências são tratadas no contexto social. Na atualidade, a vida sofreu uma desvalorização radical a ponto de ser equiparada a um objeto cujo valor varia como variam os preços de ações no mercado de capitais. Numa reportagem sobre pistoleiros exibida num canal de televisão,5 um entrevistado disse que “para matar uma pessoa comum, o preço gira em torno de duzentos reais, mas para matar uma pessoa mais importante é mais caro porque o trabalho é maior. Essas pessoas mais importantes têm seguranças e isso encarece porque dificulta mais. Não pode ser um só para fazer o serviço: tem que envolver mais gente” (palavras do entrevistado). Por isso, quem contrata tem de pagar mais caro, e certamente paga mesmo! Moral da história: pobre só tem condições de contratar “serviços de matadores” para matar também pobres. Ricos podem se valer desses “serviços” tanto para matar pobres quanto para matar ricos. Além do mais, esses “serviços” são, na maioria das vezes, “especializações” de homens que provêm da classe pobre. Em certas circunstâncias, quando um pobre é morto num plano de execução destinado a uma pessoa mais importante economicamente, isso somente ocorre para desimpedir caminho, quer dizer: não atrapalhar. A morte de pobre nessas condições é somente uma atividade meio. O cenário que estamos retratando, tão frequente no presente cotidiano, nos faz pensar no valor da vida, no âmbito de uma postura ética, num tipo de elo frouxo do sujeito com o tecido social e em outros tantos fatores que podem ser considerados para explicar a criminalidade. O fenômeno da criminalidade no marco da era atual não escapa aos efeitos que essa época impõe ao sujeito, devendo, pois, ser pensado no âmbito de uma problemática mais geral da atualidade do mundo ocidental superdesenvolvido, no qual encontramos a situação paradoxal em que o incremento da liberdade e o bem-estar não podem ser analisados fora dos efeitos da segregação, que enquanto consequência estrutural do laço coletivo pode ser pensada como “uma via de tratar o insuportável, o impossível de suportar”.6 A segregação opera nos traços diferenciais em termos de uma lógica do todo produzindo duas categorias ordenadas, hierarquizadas e identi5

Canal da GLOBOSAT (NET, TV a cabo).

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SOLLER, C. Sobre a segregação. In: BENTES, L. e GOMES, R. F. (orgs.). O brilho da infelicidade.

Rio de Janeiro: Contracapa, 1998, p. 46.

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ficatórias. Dessas categorias temos, por um lado, um agrupamento que funda aquilo que denominamos coletividade, enquanto que a outra categoria define o que é da ordem da exclusão. O excluído, o exterior, o estrangeiro geralmente toma a configuração de exótico, de estranho quando permanece suficientemente afastado do inimigo ou mesmo quando está muito próximo na coletividade. É enquanto resto excluído do tecido social que pensamos o criminoso encarcerado, pelo menos no programa de exclusão ao qual o detento está sujeito em virtude da corrente de pensamento que povoa o imaginário do cidadão brasileiro e que também encontra ressonância no sistema penal. Enveredar pelas sendas da língua para escrever sobre a criminalidade significa, para mim, abrir um horizonte em que parto do momento presente (uma investigação intitulada Do contrato de locação à morte7 e outra realizada nas unidades de detenção do Sistema Penal do Rio de Janeiro, denominada O ato criminoso como modalidade de gozo)8 no qual me encontro diante de páginas impressas sobre o que podemos denominar o mais extremado ato do homem, para me reportar a dois tempos de um passado longínquo que remontam à minha própria história e à de meus ancestrais. Uma ocorrência teve um desfecho trágico: o assassinato, por engano, de meu avô materno na terceira década do século passado; um outro assassinato à luz do dia, por mim presenciado, de um aleijado conhecido como Salvador, que se locomovia com a ajuda de um carrinho de mão e exercia o ofício de consertar utensílios de cozinha. Tinha seis anos de idade. Brincava ao lado de minha casa quando fui surpreendido com o barulho de um tiro de espingarda desferido em Salvador, que prontamente caiu ainda se debatendo. Lembro-me nitidamente quando os dois rapazes, conhecidos da minha família, saíram correndo e pularam o muro de uma casa para se esconder. Sabia os seus nomes. Ao entrar em casa minha irmã mais velha disse: mataram Salvador. Respondi: eu vi, foram João e Nandinho. Ao proferir tais palavras, minha irmã disse-me em tom enérgico: “Você não viu nada.” Insistia em dizer que vi e que sabia quem tinha praticado o crime, mas quanto mais insistia mais era dito para mim que eu não tinha visto absolutamente nada. Tive que aceitar – sob qual tipo de ameaça, não sei – que não tinha visto nada. Só que 7

Investigação realizada com garotos de programa na cidade do Rio de Janeiro durante os anos de 1993 e 1994, sob a subvenção do CNPq.

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Investigação realizada sob a subvenção do CNPq durante os anos de 1995 a 1999.

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o que eu vi transformou-se numa imagem vívida que jamais abandonou minha memória, pois “os impulsos da imaginação vêm colocar o inesperado na linguagem”.9 Assim, vi-me inclinado ante o pórtico de minha própria história, o que talvez tenha sido a principal razão que me impulsionou no engajamento de uma temática de pesquisa bastante específica: a criminalidade como modalidade de gozo. Inicialmente não tinha a menor ideia de que teria sido essa a força propulsora. Quer dizer, algo do meu interior, de minha história e de um lugar em que se deu um acontecimento trágico que, de tão distante se fazia insistentemente tão próximo, devido à vivacidade de sons que ecoam e de palavras que durante todos esses anos se fazem presentes. Sons, palavras, gestos e filigranas de memórias constituem um caleidoscópio no qual se perfilam as regras de um jogo, cujo limite para entrada em cena não permitiu nenhum diálogo: meu avô, segundo testemunham seus próprios filhos, insistiu inutilmente em querer sustentar sua identidade, porém aquele que o matou não lhe deu nenhum crédito, pois certamente tomou suas palavras como tentativa de disfarce. O aleijado retratou uma impotência semelhante à de meu avô, pois nem correr do inevitável podia, uma vez que seu meio de locomoção era bastante precário: não era sequer uma cadeira de rodas e sim um carrinho de fabricação caseira que o próprio dirigia. Assim, posso hoje assegurar que o trabalho realizado com garotos de programa, para ter acesso a um tipo de saber, me colocou diante de uma montagem do crime organizado, configurando-se somente como a causa precipitadora de duas lembranças que me levaram ao estudo da criminalidade e da violência. Diria que o assassinato de meu avô se constitui como a causa secundária, enquanto que o assassinato que presenciei, do qual fui proibido de falar, pode ser tomado, certamente, como a causa principal que me levou à escolha da temática do presente estudo. Eis três experiências (o assassinato de um professor público chamado José; o assassinato de um consertador de panelas de nome Salvador e a ciência da existência de montagens do crime organizado)10 vividas em momentos bem diversos, que representam uma abertura para uma temporalidade e também para um espaço onde encontro um universo de 9

BACHELARD, G. Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 25.

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FARIAS, F. R. Esse olho que olha... mata! Tempo Psicanalítico. 28, Rio de Janeiro: SPID, 1995.

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ocorrências sendo que a principal delas atravessa, enquanto algo da ordem do incompreensível, imperiosamente a minha memória. Nesse sentido, olho-me em retrospectiva, tanto percorrendo o caminho já aberto pelos meus ascendentes mais próximos, quanto tentando abrir caminho para uma explicação que seja para mim algo que, enquanto criança, não pude elaborar por não me ter sido dada a oportunidade de dizer que vi aquilo que de fato vi. Ao descortinar esse passado, o que encontro? De um lado, um espaço fugidio; de outro, um tempo que se esvai: ambos retratando a impossibilidade de uma presença pregnante na memória, que até então se mostrava irresgatável! A experiência vivida de perdas dificilmente elaboráveis – o acontecimento e seus efeitos – seja em quem a viveu diretamente, seja naqueles que viveram sua narração, não passa incólume, principalmente quando se tem de negar em palavra aquilo que não foge dos olhos. Olhares diferentes para uma mesma cena? Certamente: um vê algo, em seguida vem o imperativo de não ter visto nada. De minha parte, somente posso imaginar, viver e tentar transmitir experiências que se transformaram radicalmente em função do meu engajamento nessa investigação. Como pesquisador, procurei elaborar a faceta tão enigmática, impensável, antiga e radical do homem: sua propensão e vocação para o crime. Tentar ser pesquisador numa temática de tamanha complexidade é penetrar numa zona de obscuridade, passar por situações delicadas, aventurar-se ante o desconhecido, o tenebroso, o trágico e conhecer de perto o muro para além do qual somente há o horror. Eis o veio que me causou e que se verteu em fonte de interesse: pensar o crime articulando-o ao conceito psicanalítico de gozo. O fato de me encarregar de um ofício dessa natureza, encontrar-me frente a frente com criminosos para ouvir deles uma narrativa sobre um crime cometido, me faz retroceder uma vez mais a um ponto de partida: minhas inquietações de professor, meu percurso de psicanalista e a forma com que o cotidiano presente se impunha forçosamente a mim. Este é o solo que tomo como referência para tentar descrever um vivido em suas várias nuanças, ao mesmo tempo em que tento relacioná-lo a um tipo de “preocupação” ontológica. Creio que a palavra preocupação tem seu peso significativo nessa caminhada: deparar com o criminoso para ouvir dele uma vertente acerca do crime. Assim podemos pensá-lo enquanto algo que diz respeito ao sujeito, mas que também nos remete a um tipo de metafísi20

ca, uma vez que estamos tocando diretamente e de forma crua o universo da morte, do matar e do morrer. Esse horizonte delineou-se no tipo de visada que pretendemos construir sobre a criminalidade, o crime e o criminoso. Sendo assim, a experiência de um psicanalista que se aventura a investigar a criminalidade a partir do criminoso é uma ousadia movida pela coragem e pela curiosidade, para enfim desaguar no desconhecido, no mundo das trevas e num lugar onde as palavras não circulam. Certamente estamos nos referindo à vivência do matar e ao efeito desse ato: o ser morto. Assim nos confrontamos com uma faceta da realidade que nos coloca diante do inaudível, do indizível e do abismático. Mas temos de admitir que a vivência de psicanalista-pesquisador é no sentido grego Empeiria e Pragmateia, especialmente considerando as direções às quais esses termos nos enviam. Entendemos assim que tratamos de uma modalidade de aproximação ao mundo das coisas (Real no sentido filosófico), mas também uma tentativa de tecer considerações e tentar produzir inteligibilidade sobre esse mundo. Em suma, conhecer, explorar a realidade e apropriar-se do real significa tentar desvelar um universo obscuro, complexo, tenebroso e sombrio, já que estamos nos referindo à criminalidade. Pretendíamos pensar a essência do ato criminoso, sua causa e o tipo de gozo dele decorrente. Para tanto se fazia necessário nos tornarmos íntimos, porém não praticantes, da criminalidade e consequentemente do criminoso, para que fosse possível o rastreamento de ideias referentes ao crime. Em princípio, fomos movidos por um tipo de inquietação traduzida na seguinte questão: existe alguma articulação entre o gozo do sujeito e o tipo de ato praticado na criminalidade, considerando os efeitos diversos produzidos por um acontecimento dessa natureza? Esse direcionamento nos aponta para a problemática da criminalidade como uma questão ética. Assim, estamos considerando a relação do sujeito com a criminalidade, sendo que esta relação nem sempre é objeto de questionamento, quer seja em termos dos seus desdobramentos, quer seja em razão dos seus determinantes. Em outras palavras: em que domínio situamos a relação do criminoso com o crime no tocante a um posicionamento ético? O criminoso, como produto do social em função de uma escolha subjetiva, emerge como aquele que se prontifica a exercer uma função exigida pelo desenvolvimento da técnica, além de estar movido por uma certeza de que seu ato enquanto tal tem que ser praticado, pois sua identidade 21

de criminoso deve a todo custo ser garantida, mantida e conservada. Desse modo, se apropria de um lugar no qual se investe da tirania, buscando êxito. Assim, dirige-se ao semelhante para submetê-lo a um exercício de horror, na crença de que dessa forma está garantida sua identidade de poder absoluto. Por isso, nenhuma outra coisa lhe interessa. De um ponto de vista ético, estamos diante de um sujeito que, em sua relação com o saber, não quer tomar ciência de qualquer articulação entre o que faz (o ato criminoso) e as consequências desse ato no campo das relações sociais. Tivemos que nos tornar íntimos, mas ao mesmo tempo tomar a distância necessária, se é que isso é possível, da intenção de praticar um crime em sua concretude. Mas como desvendaríamos o espaço de segredo daqueles que se apresentam como criminosos, tão próximos e tão distantes de nós? Quer dizer, como nos reportar aos que deram um passo além daquele que faz parte de nossas caminhadas? Intimidade estranha com o crime: foi essa a via de que dispomos para uma escuta acerca dessa faceta do homem. Assumir essa intimidade nos exigiu mergulhar num tipo de solidão, mas não uma solidão por nos encontrarmos sozinhos, e sim a solidão definida a partir de aporia, como sendo uma passagem sem saída. Aliás, saída é uma questão nos lugares em que se deu essa investigação! Mas foi esse o encaminhamento que nos levou à condição de diálogo. Um diálogo estruturado como uma forma mobilizadora de pensar: uma espécie de conversa íntima entre, de um lado, o pesquisador; do outro, o detento. Ambos se voltando para um diálogo sobre si mesmo ou, mais precisamente, uma reflexão sobre a realidade do mundo e sobre acontecimentos que se cruzam – o ato de pesquisar e o ato de matar. Direcionar-se para a verdade, considerando o sentido grego dessa palavra (a-letheia), é tornar-se um perito disposto e exposto a tipos de vivências as mais díspares e estranhas. Estamos nos referindo à exposição a uma faceta do modus vivendi de certa forma arriscada, mas também fundamental, pois o perito está sempre mais próximo do perigo. Foi, pois, com essa ferramenta (a perícia diante do perigo) que nos movemos para nos olhar numa espécie de espelho que nos levou a um labirinto, fazendo-nos passar por uma ponte que separava um mais além, que para nós era somente da ordem de uma cena construída pelo discurso, mas que outrora se fizera ato. Eis a aventura perigosa a que nos propusemos em razão do saber: uma aventura perigosa que exige habilidade, entusiasmo e comprometimento. Como aventura, nos referimos a um duplo movi22

mento: do presente para o futuro e do futuro para o presente. Trata-se de uma exigência que nos expõe ao risco e que nos faz presenciar um tipo de ocorrência através de um relato caracterizado pela crueza das palavras, uma vez que a vida é tratada como se fosse algo de que o homem dispusesse quando bem entendesse. A rota que nos guiou até esse pórtico, o itinerário que nos serviu de guia, bem como os portões de saída, fazem parte de uma odisseia, ou mesmo, conforme já dissemos, de uma Empeiria. Se tomarmos essa palavra no seu significado grego, observamos que peiro significa passar de um lado a outro, ir além, atravessar, tentar e examinar, tendo duas raízes possíveis. Uma raiz indo-europeia (peir), da qual extrai-se o significado terra, prova, risco e tentativa; e uma outra raiz do sânscrito (par), que significa passagem, mau passo e caminho. A partícula (en) indica acontecimento, uma ocorrência que se verifica no espaço subjetivo e que exprime permanência no espaço e no tempo. Encontramos também na raiz dessa palavra o radical péras que nos aponta para a questão do limite como aquilo que se encontra no topo das tábuas pitagóricas, indicando uma relação explícita com o Bem. A difícil via-crúcis, sempre estreita e íngreme, é uma confrontação com o proibido, com o além das convenções, conforme podemos encontrar no ato retratado em Laio e Édipo ao se confrontarem num espaço estreito onde a lei do pai e a curiosidade do filho confluíram em ambos, mas não se firmando a partir desse encontro nenhum acordo: por isso não foi permitida a passagem de um a outro e tampouco houve transmissão. Foi negado por ambos que um pai é também um filho e que a aspiração de todo filho é um dia vir a ser um pai. Fazia-se necessário para ambos assumir a discordância, aceitar o estado de tensão e reconhecer a alteridade. Isso quer dizer que cada um devia deixar livre o espaço do outro e viver em seu corpo próprio.11 Mas, sabemos, para o sujeito viver seu próprio corpo é preciso antes “escalar” o corpo do semelhante da espécie: a potencialidade que admitimos ter em nosso corpo somente se produz a partir da potencialidade que apreendemos dos movimentos e ritmos prefigurados no corpo da cria humana. Para que possamos falar de alteridade, temos obrigatoriamente de pensar na existência e manutenção de um limite. Somente cônscio desse limite o sujeito pode respeitar o espaço do outro, em termos do cuidado, 11

Como formula Merleau-Ponty em sua obra A fenomenologia da percepção. Cf. MERLEAUPONTY, M. Fenomenologia da percepção. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971.

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como propõe Heidegger, com o conceito de Sörge. Estamos afirmando que é preciso distinguir a substância matriz – no caso, o que podemos pensar em termos de cuidados maternos – da aspiração implícita na função paterna quando queremos situar a organização do sujeito pelo dispositivo legal. As fronteiras da matriz referida aos cuidados maternos, que se encarregam da erogeneização do corpo e mesmo de um primeiro corte ao implantar no real do corpo uma imagem, introduzem a princípio uma moral reveladora da finitude do espaço, dos limites referentes ao desejo e do impossível pretendido pelo desejar. São, pois, limites que fazem parte do existir de cada um quando a mãe, em sua função junto à criança, se encontra igualmente submetida a uma lei. Assim temos uma espécie de passagem do âmbito do conhecido (antecipação de um nome e de uma imagem corpórea) para algo da ordem do desconhecido (o desejar da criança). Essa passagem é sempre uma transgressão, uma vez que se configura em termos de uma experiência perturbadora (a vivência de satisfação), mas igualmente fascinante e estimulante. Transgressão, pois a criança, pelo acesso ao desejo, se contrapõe a ser algo da natureza, criando-se a partir de um ato a busca do objeto que causou a primeira satisfação. Temos assim a tarefa que nos é dada de ultrapassar um limite – e não temos nenhuma opção. Aliás, sabemos que “o homem não deve se abater e se atormentar com os crimes de seus antepassados, mas ao contrário, pode e deve se livrar do peso de seu passado”.12 É nesse sentido que nos referimos à peripécia como sendo uma função essencial, um atravessamento dado pelo imaginário que tem lugar através de uma experiência, mas que é de fundamental importância para nos capacitar a metaforizar e simbolizar o real. A função imaginária do Eu é a maneira de apreender as características dos objetos do mundo e é no imaginário que encontramos o núcleo de toda nossa experiência. Dito em outras palavras: através dessa apreensão, captamos também uma intenção de vida e, consequentemente, de morte, o que contribui para que possamos dar sentido aos fenômenos que têm lugar no mundo que nos circunda, mediante o surgimento da função simbólica através da presentificação da ausência (a ausência faz parte da presença). Desse modo, a realidade do mundo aparece de forma plena. Essa particularidade da constituição do sujeito nos faz lembrar da nostalgia que 12

ALTOÉ, S. A psicanálise pode ser de algum interesse no trabalho institucional com crianças e adolescentes? In: AlTOÉ, S. (org.). Sujeito do direito, sujeito do desejo. Direito e psicanálise. Rio de Janeiro: Revinter, 1999, p. 60.

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reina em cada um de nós, devido a nossa busca pela vivência de plenitude em face de um futuro incerto no qual o espaço e o tempo se mostram distantes e inalcançáveis. Essa é uma força que nos move, mas o que não queremos saber é que esse movimento nos coloca diante de um vazio. O que fazer com esse vazio? Teremos de construir saídas para tentar circundá-lo, para que assim seja possível viver a tensão perturbadora do momento presente, um presente que nos aparece como encoberto por uma máscara denunciadora de um modo enigmático de realidade: a não atualidade do discurso momentâneo que, ao ser enunciado, já aponta para um passado sempre irresgatável. Quando situamos a criminalidade como uma ocorrência própria do homem, pois não a encontramos nem na natureza nem nos animais, estamos pensando a escolha de um itinerário onde existe alguma coisa oculta ou bloqueada. Esse obstáculo, sem dúvida, nos faz pensar nas ruidosas manifestações da pulsão de morte, que rompe o encadeamento das sequências espaço-temporais e “escreve”, na maioria da vezes, capítulos vazios na história do sujeito, cujo resultado é a falta de continuidade entre passado e futuro. Quer dizer, o passado traz consigo parte de um discurso que por vezes é possível resgatar pela memória, mas que aparece de forma estanque no presente como um projeto sem finalidade de inscrição simbólica. Ou mesmo, em se tratando de um ato, estamos diante de um tipo de ocorrência que não faz laços simbólicos. Assim, a criminalidade nos faz pensar numa espécie de distanciamento em que o sujeito não se aventura a olhar, ver, ser tocado e ter uma imagem desveladora. Com isso, fica impossibilitado o ato de reconhecimento: falta ao sujeito uma espécie de iluminação sobre o que, no pensamento filosófico, denomina-se “homem interior”, de que Descartes13 nos teria falado como sendo a “consciência luminosa”, aquilo que diante de nós nada é senão uma visão do invisível. Essa consciência clara, refletida e luminosa decorre do exercício da razão, mas no texto freudiano é pensada como “os olhos noturnos” da realidade inconsciente. A saída pela criminalidade somente pode ser pensada como a dificuldade de se conduzir para a luz e também de trazer a lume o que é velado, ou mesmo possibilitar ao semelhante alcançar esse lugar de reflexão, de clareza e de luminosidade, fruto de “uma instância cega e tirânica que pa13

DESCARTES, R. Meditações sobre a filosofia primeira. Coimbra: Almedina, 1985.

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rece ser a antinomia do ideal do Dever”.14 Seria transferir a experiência, mas sem o reconhecimento da existência do abismo diante de si: um tipo de realização não inscrita simbolicamente ou de atos que não tenham uma significação capaz de firmar laços simbólicos. Não podemos nos esquivar ante a experiência do desconhecido e nos arvorar a um projeto de dominar o mundo. Isso exige de nós esforço e empenho, uma vez que cada busca que realizamos se traduz como uma tarefa difícil e às vezes dolorosa, mas que pode ser um movimento ligado ao prazer quando o resultado é a descoberta; um novo ponto de partida, uma nova perspectiva a partir da qual haja a possibilidade de o sujeito se rever, de ser tocado e de ter de si mesmo uma imagem desvelada. Seria, pois, adentrar um mundo em que uma nova perspectiva direcione o sujeito para a reflexão, para a produção e para a invenção. Assim ficam demarcados o campo das ocorrências visíveis e o espaço do recalcado. Nesse projeto de busca de reconhecimento, o sujeito passa por lugares nos quais o abismo e o vazio mostram a presença de uma ausência que tem de ser suportada: o vazio ocupa o espaço da ausência quando a falta do objeto torna-se insuportável.

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LACAN, J. Introdução às funções teóricas da psicanálise em criminologia. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 138.

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