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Amores, Arte de Amar, Remédios de Amor, Receitas de Beleza; e à fase adulta As. Heróides, Metamorfoses, Os Fastos e Os Tristes. Essas obras, embora ...
“O feminino na obra Arte de Amar de Ovídio: livro III” “The female in the Ovid’s Art of Love: book III” Amanda Pinheiro de Melo Centro de Comunicação e Letras – Universidade Presbiteriana Mackenzie Rua Piauí, 143 – 01241-001 – São Paulo – SP [email protected]

Resumo. Esse ensaio tem por objetivo analisar o feminino na obra Arte de Amar de Ovídio, mais especificamente, o livro III. Num primeiro momento, apresenta-se uma visão geral do autor, sua época e obra. Em seguida, destaca-se o gênero literário da obra que é elegia amorosa, para, finalmente, o corpus do trabalho ser analisado, focando o feminino na obra. Palavras-Chave: Ovídio. Feminino. Elegia amorosa Abstract. This essay has for objective to analyze the female in the Ovid’s Art of Love, specifically, the book III. In the first moment, it shows a general point of view on the author, his time and work. Then, it shows the work’s literary genre that is loving elegy, in order to, finally, analyze the work’s corpus, emphasizing the female in the work. Key words: Ovid. Female. Loving elegy

1. Ovídio, sua época e a Arte de Amar

“Existe um poeta latino cujo nome é inseparável do sentimento amoroso e que em vida pagou por essa reputação com o exílio” (GRIMAL, 1991, p.153). Este é Públio Ovídio Nasão (Publius Ovidius Naso), mestre da erudição mitológica e da elegância mundana, que nasceu em Sulmona, vale dos Apeninos, território a leste de Roma, em 43 a.C. e morreu em Tomos, cidade situada na costa da atual Bulgária, quase sexagenário, no ano 17 d.C. Embora Ovídio tenha, a princípio, trabalhado em alguns cargos públicos, desde muito cedo, ele se dedicou definitivamente à poesia. Tornou-se por seu talento e seu temperamento, o poeta da moda na alta sociedade romana. Leu em público os seus primeiros poemas, como então era de costume, e essas primeiras investidas poéticas não só lhe deram fama e renome, mas, sobretudo, a oportunidade de conquistar a amizade de figuras importantíssimas da literatura latina, tais como: Vergílio, Horácio, Propércio e Galo que também animavam a prosseguir na carreira iniciante; e não deixou ofuscar por eles e soube conquistar seu espaço próprio no mundo literário romano.

Foi justamente essa sua vocação o elemento capaz de produzir as inúmeras obras do poeta. Obras que alguns historiadores, em suas preocupações didáticas, dividiram em duas fases: jovem e adulta. Pertenceriam à fase jovem as composições dos livros Amores, Arte de Amar, Remédios de Amor, Receitas de Beleza; e à fase adulta As Heróides, Metamorfoses, Os Fastos e Os Tristes. Essas obras, embora possam ser classificadas em diferentes gêneros, possuem um princípio comum, que pode ser observado ao mesmo tempo, por exemplo, nas Metamorfoses e na Arte de Amar. Vivendo na segunda metade do século I a.C e nos primeiros anos da era, durante o período de Augusto, portanto, e no início do governo de Tibério, participou das modificações decisivas que ocorreram nessa época: pôde acompanhar os passos que levaram à Pax Romana, presenciou a implantação das políticas do princeps, observou a evolução social e cultural que se processava na “Cidade Eterna” e viveu intensamente as conseqüências determinadas pela consolidação de uma estrutura nova. A partir de então, escreve, ama e goza com um único objetivo: impor-se mais e mais ao círculo culto e elegante que o recebera com simpatia. Não se preocupava com política, nem se deixava render por nenhuma paixão. Ovídio vivia como que em êxtase; “tinha as mais famosas e belas mulheres da época implorando o seu amor. Seu nome corria de boca em boca e as jovens elegantes e ricas sabiam de cor os seus poemas. (BAYET, 1966, p.54) Em meados do ano 8 d.C foi banido de Roma pelo imperador Augusto por causa de seu livro Ars Amatoria, considerado imoral pelo príncipe romano, o que lhe causou um profundo desgosto até o final de sua vida. “[...] no ano 8 d.C, o raio eclodiu sobre sua cabeça: Augusto intimava-lhe

que abandonasse imediatamente Roma e que se confinasse, sozinho, sem a mulher, sem as coisas mais queridas, à longínqua Tomos, nas Margens do Mar Negro, que se quis identificar com a atual Constance; ao mesmo tempo, ordenava-se que se retirasse das bibliotecas públicas a Ars Amatoria. Jamais se soube com certeza a razão desta providência...” (PARATORE, 1983, p.512)

Foi nessa época que Ovídio escreveu a sua obra mais famosa Metamorfoses (Metamorphoseon). O poeta, mesmo tendo apresentado argumentos e justificativas para seus poemas, ao que parece, nada foi capaz de comover o imperador Augusto, que não emitiu, pelo que se supõe saber, qualquer resposta ao enunciador, tampouco amenizou seu infortúnio obrigando Ovídio a viver por mais dez anos na terra do exílio, deprimido, magoado e infeliz. Caio Otávio Turino, que mais tarde se transformou em Caio Júlio César Otaviano e posteriormente Augusto, nasceu em 63 a.C e faleceu em 14 d.C. Após o assassinato de Júlio César, aguçado mais pela curiosidade e herança do que pelo sofrimento da perda, Otávio regressa para Roma e, devido a recepção que recebe de soldados e concidadãos,

visto que era o sobrinho herdeiro de César, percebe a oportunidade que se lhe apresentava: o poder e a glória. Recebeu seu título de Augustus, que lhe dava uma auréola sagrada, em 27 a.C. Augusto foi um grande constitucionalista. Além de excelente orador, pela elegância, clareza e concisão, ocupou-se da poesia, escrevendo Sicília e uma coleção de epigrama. Em prosa, sua obra consiste em três livros, que tratam das disposições para o funeral, das suas empresas (index rerum a se gestarum), de uma estatística dos homens aptos para as armas e do montar do tesouro público. Roma, a essa altura, caracterizava-se por seus cidadãos já esgotados com tantas guerras, pelo sofrimento das perdas que elas ocasionavam, e pelos reveses que tais conflitos acarretavam como carestia de certos produtos, alimentícios, indispensáveis à sobrevivência. E são os que habitam os subúrbios romanos que são afetados pelos tais problemas sociais. Por muito tempo a plebe, que tinha de lutar pela sobrevivência, viveria à mercê de sucessivos consulados. Tendo considerado as necessidades do povo e da elite e apoiando-se em suas principais qualidades pessoais, marcadas pelo espírito prático, pelo instinto conservador e caráter impessoal inatacável, o jovem Augusto, intencionalmente, para ganhar força e poder com sua política, começa a modificar Roma. Muitas são as modificações, tais como: construção de teatros, de novos templos, restauração de cultos religiosos, luta pelo resgate da prática de antigos valores, entre outras. As reformas foram tantas, para embelezar a cidade, que o período de seu governo era conhecido como Aureum Saeculum. Nesta época, quando a decadência dos costumes se acentuava com a excessiva permissividade e o descaso pelas tradições, também nasce e se desenvolve, numa ala expressiva da sociedade, o desejo de restauração dos antigos costumes. Exigem-se e se promulgam leis morais de grande rigidez. É justamente nesse momento de grande esforço pela reconstrução dos velhos valores, surge um grupo de jovens poetas, inclusive Ovídio, cantando o amor extraconjugal e exaltando a paixão, características presentes na Ars Amatoria. Arte de Amar é uma obra cujo tom é grave e majestoso, ou seja, nobre, dirigida à nobreza, que se escondiam atrás da seriedade, com um quê de poema didático. “[...] uma obra prima de graça e malícia, de bom humor e de arte.” É assim que E. SaintDenis define a Arte de Amar (1972, p.63). Não se sabe exatamente o ano em que Ovídio escreveu a Arte de Amar. Inicialmente, a obra deveria constar de dois livros somente; no decorrer da criação da obra, Ovídio resolve juntar um terceiro, exclusivamente para as mulheres. Com essa obra, Ovídio quis transformar em arte o que, como o amor, existia de modo natural. Segundo Grimal (1991, p.157), para Ovídio: “[...] o amor é acima de tudo o desejo. Aliás, o verbo latino amare significa antes ser amante de alguém, e a Arte de Amar é a coletânea onde se encontram os conselhos mais eficazes para obter os favores de uma mulher.

Na verdade, como já dissemos, Ovídio só pensa nas mulheres que vivem da libertinagem e cuja única preocupação, única razão de ser é exatamente conquistar e conservar amantes.”

Ovídio apresenta-se como um autor singular na medida que reivindica um prazer igualmente partilhado entre homem e mulher quando do ato sexual. Ele quer ignorar essa dicotomia de receber ou dar prazer que estão ligadas a dois fatores: dominação e superioridade, e subserviência e inferioridade. “[...] A figura masculina nos quadros sociais é a própria representação do poder de domínio (SILVA, 2003, p.363), enquanto a mulher romana e a escrava em Roma são sempre aquelas que servem, aquelas a quem compete a passividade, não gerando esta, neste sentido, nenhuma problematização, visto ser uma condição natural. Mas a figura da mulher na obra Arte de Amar não é um ser passivo, pelo contrário, ela deve desfrutar de todos os prazeres assim como o homem os desfruta. Não há essa divisão entre os gêneros: o homem visto como o “dominante” e a mulher como a “dominada.” Segundo Silva (2002, p.77): “[...] Ovídio nos apresenta o ato de amor como uma comunhão de dois corpos tentando se dar prazer. A mulher representada na Arte de Amar não é um mero receptáculo, um meio de satisfação individual do homem; ela deixa de sê-lo para tornar-se um ser de desejo, que busca, junto com o homem, o direito de partilhar o prazer.

O “feminino” de Roma, segundo Finley (1991, p.159), “mesmo sem voz, possui uma identidade, uma individualidade, que a torna diferente, porque ele é o pólo oposto da sociedade que, pelo Direito Romano, instituía que o poder concentrar-se-ia nas mãos do homem, não porque este era melhor, tivesse mais responsabilidades ou méritos, mas pela força viril que era tão cultivada pelos próprios romanos.” A Arte de Amar é um surpreendente título que seduz por sua simplicidade e inquieta por sua ingenuidade. Pode-se perguntar se é necessário, útil ou conveniente ensinar esta arte, que parece evidente, fazendo parte dessas coisas tão compartilhadas e tão comuns a todos sem que seja preciso ensiná-las. Mas Ovídio não ensina o sentimento, mas a habilidade; não o amor, mas a sedução. Reconcilia os dois sexos e dá à mulher sua participação e sua iniciativa neste jogo amoroso.

2. A Arte de Amar: uma elegia amorosa O tom predominante da Ars Amatoria consiste numa mistura de lirismo, técnicas de sedução, didatismo e eroticidade que, a priori, confunde o leitor preocupado em fixarlhe o gênero literário. Se para classificar a Ars Amatoria seguirmos o conceito investigativo sobre os meios e os fins existentes na obra, buscando a relação causa – efeito, notaremos que isto é um tanto ou quanto perigoso, porque, partindo do princípio de que todo trabalho científico deve fundamentar-se no que é provável e, seguir uma linha teórica racional e objetiva; quando se trata da Antigüidade Clássica Greco-Latina, é muito difícil emitir qualquer

afirmação no que concerne à realidade objetiva, uma vez que por um lado, as “certezas” históricas são fatos de hipóteses e, por outro, a obra trabalha com o verossímil e o imagético, não apenas com o real. O filósofo Aristóteles ao desenvolver os fundamentos da Poética Clássica já discutia acerca da distinção entre o histórico e o poético, e dentro deste conceito, a questão do verossímil: “É claro, também, pelo que atrás ficou dito, que a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade.

Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a obra de Heródoto podia ser metrificada; não seria menos uma história com o metro do que sem ele; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos quais podiam acontecer. Por isso, a Poesia encerra mais filosofia e elevação do que a História, aquela enuncia verdades gerais; esta relata fatos particulares. (ARISTÓTELES, 1997, p.3).

Portanto, ao seguir a linha teórica proposta desde a Poética Clássica de Aristóteles, na qual a representação artística já era tida como um fator construtivo e a natureza da realidade como efeito de sentido, é possível classificar, sem qualquer restrição, que a Ars Amatoria é uma obra lírica, até porque o didatismo com o qual a obra parece fundamentar-se e leva o interlocutor ao questionamento acerca do gênero, não passa de um recurso elegíaco utilizado por Ovídio, e, portanto, um recurso lírico. É possível classificar a Arte de Amar como elegia amorosa, fruto da helenização romana. Veyne afirma que “a elegia erótica quer seja mentira divertida, quer transforme a realidade em objeto de arte, é de origem helenística.” Helenização essa que alguns historiadores confundem com mera cópia e tradução, mas que são dignamente explicitadas pelas palavras de Paul Veyne: “Roma é um povo que tem por cultura a de um outro povo, a Grécia. [...] A Cultura escrita de Roma, a poesia, a prosa e igualmente as cartas oficiais e os decretos do Senado, foi inteiramente uma cultura grega em língua latina.[...]” (VEYNE, 1983, p.30) “A questão de originalidade romana perde sua significação e seu interesse desde que se deixe de acreditar nos gênios nacionais e no ciúme universal em relação a cada “patrimônio cultural;” a cultura aclimata-se como as plantas que possuem alguma utilidade e não tem pátria mais do que estas têm. Os romanos são evidentemente originais quando acrescentam alguma coisa à Grécia, quando aperfeiçoam as receitas conhecidas antes dela (pois para eles não há arbitrariedade na cultura: a civilização é feita de técnicas que possuem a universalidade da natureza, da razão); mas não são menos originais quando cultivam por conta própria um bem de origem grega. (VEYNE, 1983, p. 32).”

Os latinos Propércio, Tibulo e Ovídio passaram a desenvolver um tipo de poesia tida como elegia amorosa.

“(...) serão atraídos ainda mais por um outro tema, o amor, que é uma matéria duvidosa, quando não se trata do amor conjugal e quando a heroína é uma mulher de vida irregular ao invés de uma matrona (Ibidem, 1983, p.44).”

Essa poesia se distinguia da lírico-amorosa sob vários aspectos. Enquanto líricoamorosa, por exemplo, estava envolta numa esfera literária em que era cabível que o poeta cantasse temas modestos, contentando-se com uma musa sutil, a qual temia sobremodo, a poesia elegíaca podia furtar-se cantar o tema amoroso de uma perspectiva personalista e apaixonada, porque trazia, como eixo temático, as aventuras de um sujeito que não pretendia ser o herói da narrativa, nem descrito por seus feitos, mas era um sujeito que também militava, mesmo que metaforicamente, como afirma Veyne, “em situações prazerosas, nas quais heroicamente buscava sua musa. Embora todo gênero literário seja obrigado a manifestar-se de acordo com uma determinada perspectiva do mundo, a elegia não respeitava tal pressuposto, porque apresentava ser a convergência de todo o sistema comunicativo de seu meio cultural e operava explícita e conscientemente com determinados temas. O que produzia certos desencontros entre discurso e realidade, porque era o próprio poeta elegíaco quem definia sua identidade como diversidade, escolhendo um tema relativo ao mundo – no caso, por exemplo, do amor – que lhe assegurava auto-suficiência. Assim, esse “modelo de mundo,” confrontava-se com a própria realidade, transformando as linhas ideológicas e sua força dentro do texto em algo parcial e talvez revelável. Dessa maneira, a escolha dos elegíacos recaía, em geral, sobre a celebração das relações amorosas irregulares, cujo ambiente era urbano, visto que, ali, figurava a vida sofisticada e cultural de intelectuais, mulheres livres e homens de poder. Nesses poemas não prefiguravam os sofrimentos e desapontamentos destinados ao sentimento amoroso, mas traziam à tona a renúncia de uma vida respeitável aos olhos da sociedade ou as vantagens de um casamento. Nos textos elegíacos amorosos, o discurso é construído e organizado plenamente sobre uma ideologia igualmente amorosa(...), observe na obra Ars Amatoria: Sed neque tu dominam, uelis maioribus usus, Desine, nec cursus anteeat illa tuos. Ad metam properate simul; tum plena uoluptas, Cum pariter uicti femina uirque iacent.

Mas as velas não abras mais do que a tua amiga Não a deixes para trás e que ela se antecipe à tua marcha também não lhe concedas. Que a meta seja atingida ao mesmo tempo. São guindados ao cume da volúpia o homem e a mulher quando vencidos ficam na cama, sem forças, estendidos. (OVÍDIO, 1992, II, 725-729)

Sentiat ex imis Venerem resoluta medullis Femina, et ex aequo res iuuet illa duos; Sinta a mulher que os deleites de Vênus Ressoam nos abismos do seu ser; e para os dois amantes seja igual o prazer. (OVÍDIO, 1992, III, 793-794)

(...)e é no centro deste sistema ideológico que se localiza a função do poeta do amor enquanto escravo de sua própria necessidade de ser amado, ou seja, para cair nas graças de sua amada, ao homem, livre não é nenhum empecilho humilhar-se, ainda que esta humilhação o reduza à categoria de servidor, de escravo (...); Qui modo patronus, nunc cupit esse cliens.

Aquele que ainda há pouco era patrono candidata-se agora a cliente (OVÍDIO, 1992, I, 88-89)

(...) de viver uma paixão, em experimentar um sofrimento demasiado (...) Quae uenit ex tuto, minus est accepta uoluptas

Os prazeres são mais vivos se conhecem o perigo. (OVÍDIO, 1992, III, 603)

(...) e, por fim, de exprimir tudo isso, o que caracteriza uma outra necessidade: a da criação poética. Non satis est uenisse tibi, me uate, puellam; Arte mea capta est: arte tenenda mea est. Nec minor est uirtus, quam quaerere, parta tueri; Casus inest illic; hic erit artis opus.

Não basta que, pela força dos meus versos, ao teu encontro tenha vindo a amada; pela minha arte foi ela conquistada, pela minha arte a hás de conservar. Menor engenho não precisas Para manter as conquistas, do que aquele que usaste

para as realizar. na conquista o acaso toma parte. A conservá-la te ensinará a minha arte. (OVÍDIO, 1992, II, 11-14) Vos eritis chartae proxima cura meae.

Chegou a vossa vez. Sereis o objeto de que vai ocupar-se a minha poesia. (OVÍDIO, 1992, II, 746)

Para o autor Gálan, a elegia nasce da plena visão da clausura do mundo representado, ou como explicita, representa o otium, isto é, o direito ao individualismo, apolitismo, a vida galante e ao luxo, é a idéia de liberdade do cidadão num Estado, no qual prevalece as aspirações e realizações pessoais. Até porque, nesse período, século I a.C., os ideais políticos que outrora nutriam Roma, marcado pela esperança de um governo justo e moderado pareciam ter desaparecido “Ocasionando não somente a troca de conduta feminina nas últimas décadas da República, inscrita num clima de agitação sociopolítica de Guerras Civis que habita um espaço de crescente importância para os interesses e gostos individuais e pelo descrédito no ideal comunitário do Estado. O matrimônio se enfraquece como instituição reguladora da concórdia civil e aumento social, e se perseguem novas formas de relação impulsionada por filosofias helenísticas e expressões religiosas orientais que buscam a felicidade pessoal do indivíduo desprendido de compromissos diretos com a República. (GÁLAN, 1998, p.27)

“Na elegia ovidiana, o serviço do amor durará enquanto durar a atividade do poeta elegíaco, afinal, nem tudo é para sempre. (Gálan, 1998, p.29)

3. Arte de Amar A Arte de Amar, ou Ars Amatoria, foi publicada no início do Século I de nossa era pelo grande poeta romano Públio Ovídio Nasão. O livro todo é constituído por versos escrupulosamente trabalhados em dísticos elegíacos. O dístico elegíaco pode ser considerado como uma estrofe, composta por um verso que se constitui de seis pés, o hexâmetro, e um verso de cinco pés, o pentâmetro. Em geral, um dístico elegíaco encerra um sentido completo, portanto, sintaticamente não necessita do dístico precedente nem do seguinte. No que diz respeito à estrutura métrica, ela tende a acoplar-se, de alguma forma, o sentido lingüístico e conseqüentemente literário, seja reverberando as imagens poéticas, seja reforçando o sentido do próprio discurso, de acordo com Prado (1997, p.204).

No que respeita ao conteúdo, a princípio, a obra apresenta ser uma espécie de manual em que o eu poético, masculino, dirige-se a outros “eus,” possivelmente masculinos; idéia que se justifica pela marca da pluralidade encontrada desde o início do poema, como se constata na seguinte passagem: Nos Venerem tutam concessaque furta canemus, Inque meo ullum carmine crimen erit.

Nós exaltamos o furto permitido e a prudente Vênus E assim nenhuma acusação será feita ao meu poema (OVÍDIO, 1992, I, 33-34) “Haec habet,” ut dicas, “quidquid in Orbe fuit.”

“Aqui nós temos tudo que há no mundo,” tu dirás. (OVÍDIO, 1992, I, 56.)

Observa-se que, em geral, Ovídio se vale desse expediente – muito comum na poesia latina, mas que na Ars Amatoria parece ser utilizado com a intenção deliberada de provocar um efeito de sentido, que sugere a fala por procuração, isto é, a de um eupoético que, por meio da primeira pessoa do plural, assume o discurso masculino da coletividade, no decorrer da obra, toda vez em que o assunto enfoca plenamente as ações amorosas. É pela voz do eu-lírico masculino que o feminino se revela e é nas entrelinhas que ele ganha espaço, e vai revelando uma sociedade diferente da qual conhecemos. “[...] Como se pode observar, nos textos latinos, o discurso sobre o amor é, em geral, um discurso masculino, vazado pela ótica aristocrática. É na linguagem, instância maior desse discurso amoroso, e meio pelo qual ele é representado, que se encontra a visão de mundo de seus autores, representativa de seu meio social (SILVA, 2003, p.359)

Perseguindo, então, os índices comportamentais masculinos, dirigidos à mulher romana, a análise iniciou enfocando o enunciador masculino e como ele constrói um discurso que permite reconstituir a figura feminina ou, até, procurando entrever um possível discurso feminino que, mesmo abstraído de voz própria, pode talvez ser identificado na obra, principalmente no livro III. A voz do eu - lírico é masculina e afirma-se a imbuída de uma missão porque fora escolhida pela deusa Vênus para celebrar o amor: Me Vênus tenero praeficit Amori Tiphys et Automedon dicar Amoris ego

- quem me dera, por mim, ser do Amor Automedonte e Tífis em conjunto, Para toda a gente o reger em todo o mundo! (OVÍDIO, 1992, I, 7-8)

Lembre-se também que o poeta já havia garantido que sua intenção não é dirigir-se às mulheres cujo pudor, bem como as leis e a condição social desautorizam: Este procul uittae tênues, insigne pudoris, Quaeque tegis médios, instita longa, pedes. Nos uenerem tutam concesaque furta canemus, Inque meo nullum carmine crimen erit

E vós, longe daqui, ó finas faixas que sempre do pudor sois ornamento! E tu, também, ó longo véu que tapas das matronas os pés, vai-te no vento! Eu só a quem é livre me dirijo: apenas me dirijo a quem não tema os prazeres mais a furto concedidos... Não tem pois nenhum mal este poema. (OVÍDIO, 1992, I, 31-34)

Mas, uma vez que o enunciador faz uma distinção entre as que, de seu destinatário feminino, podem e não podem ter acesso às suas recomendações, cumpre perguntar, quem era então aquela leitora ideal delineada por diferentes maneiras, durante o terceiro, livre para sucumbir aos impulsos amorosos e, por isso, especialista em burlar toda e qualquer vigília. Afinal, o eu – lírico dá freqüentes testemunhos disso: Adfuit Acrisio seruandae cura puellae; Hunc tamen illa suo crimine fecit auum.

Acrísio com atento cuidado a filha vigiava. Contudo teve ela amores culpados Que o fizeram avô. (OVÍDIO, 1992, III, 631-632) Cum fuget a templis oculos Bona Diua uirorum, Praeterquam siquos illa uenire iubet,

pois do seu templo exclui a Boa Deusa dos homens os olhares exceto aqueles

que à divindade apraz admitir; (OVÍDIO, 1992, III, 637-638) Cum quotiens opus est, fallax aegrotet amica Et cedat lecto quamlibet aegra suo.

se sempre que preciso diz-se doente uma amiga que apesar de estar doente o leito cede aos amantes; (OVÍDIO, 1992, III, 641-642) Fallitur et multo custodis cura Lyaeo, Illa uel Hispano lecta sit uua iugo.

Para iludir do guarda a vigilância o licor de Lieu poderás empregar se recolhido for nas vertentes da Hispânia. (OVÍDIO, 1992, III, 645-646) Quod sapiens, faciet stultus quoque; munere gaudet; Ipse quoque accepto munere mutus erit.

Também o imbecil, não só o inteligente, se mostrará alegre se lhe deres um presente e a boca fechará num cúmplice silêncio.

(OVÍDIO, 1992, III, 655-656)

Essa mulher, mesmo sem uma voz explicitamente na obra de Ovídio, isto é, uma voz caracterizada pelo falar e diálogos diretos; mesmo que apenas o enunciador masculino faça sozinho todo o discurso da obra, essa mulher romana, dizíamos, parece ganhar finalmente uma identidade precisa e até mesmo respeitável, porque o enunciador concede-lhe a autonomia das escolhas no livro três. Nos livros I e II, o enunciador representa a mulher romana, em sua generalidade, como figura inferior, cheia de defeitos e somente constituída de más virtudes. Nesses, portanto, livros nos quais parecem vigorar os pontos de vista da filosofia estoicista, naquilo que tal corrente filosófica propõe sobre busca do prazer como relação individual e suficiente ao ato sexual. Ao mesmo tempo, entretanto, em que se podem ver, talvez, elementos de um modo de conduta ou, pelo menos, de um ponto de vista estóico sobre a função da mulher e do prazer e, também, pelo fato de, quando aconselha as mulheres sobre como se fazerem amar, isso não está em jogo a priori uma condição estética pré-estabelecida para tais

mulheres, numa sociedade cujos valores maiores sempre estiveram ligados ao poder e status, tem-se a impressão também que eu - lírico, no livro III, adota algo do comportamento epicurista porque prioriza a busca de alegrias e prazeres para a vida.

Referências ARISTÓTELES, H., L. A poética Clássica. Tradução J. BRUNA. 7ªed., S. P.: Cultrix, 1997. BAYET, Jean. Literatura Latina. Barcelona: Ariel, 1966. FINLEY, M. I. As silenciosas mulheres de Roma. In: Aspectos da Antiguidade. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 1991. GÁLAN, L. La Romana. Presencia de la mujer em las elegias del corpus tibullianum. Série Estudios e Investigaciones, nº35, Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educacion, Universidad Nacional de la Plata, Buenos Aires: 1998. GRIMAL, Pierre. O amor em Roma. Trad. Hildegar Fernanda Feist. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

OVÍDIO. Arte de Amar. Trad. Natália Correia e David M. Ferreira. São Paulo: Ars Poética, 1992. PARATORE, Ettore. História da literatura latina. Trad. Manuel S. J. Losa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. SAINT-DENIS, E. Ovide humoriste: revus d’etudes latines. Paris, 1972. SILVA, Glaydson José da. Aspectos de cultura e gênero na Arte de Amar, de Ovídio, e no Satyricon, de Petrônio: representações e relações. Tese (Mestrado em Literatura Latina) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002.

VEYNE, Paul. A elegia erótica romana: o amor, a poesia e o ocidente. Trad. Milton Meira do Nascimento e Maria das Graças de Souza Nascimento. São Paulo: Brasiliense, 1983.